A editora Veneta tem feito dobradinhas temáticas em seus lançamentos de 2020. Sabrina, do americano Nick Drnaso, e Prof. Fall, dos franceses Ivan Brun e Tristan Perreton, são dois quadrinhos sobre sombras do nosso tempo: a política da desinformação e da paranoia, a cultura do ódio, a depressão, a herança do colonialismo evidenciada pelas chagas do consumismo.
Beco do Rosário, da gaúcha Ana Luiza Koehler, e A Alma que Caiu do Corpo, do paulista André Toral, são obras que se debruçam sobre o passado do Brasil e personagens marginalizados pelo que se convencionou chamar de progresso: os povos indígenas, no primeiro caso, e a população negra desalojada do centro de Porto Alegre, nas décadas iniciais do século 20, na outra HQ.
Agora, surge o terceiro "pacote duplo" do ano: Reanimator, a reinvenção do paraibano Juscelino Neco para o conto publicado em 1922 por H.P. Lovecraft (1890-1937) e para o filme thrash lançado por Stuart Gordon em 1985, e Mau Caminho, uma aventura da série Megg, Mogg and Owl, criada por Simon Hanselmann, um legítimo Diabo da Tasmânia (ele nasceu na ilha australiana e faz quadrinhos endiabrados, ora).
O parentesco entre as duas HQs dá-se pelo uso de personagens antropomórficos, pelas doses fartas de sexo e de entorpecentes (não necessariamente nessa ordem), pelo senso de humor entre o degenerado e o macabro, entre o perverso e o ultrajante, pela ética tortuosa e pelo sentimento de inadequação do protagonista em relação ao mundo. Mas as formas de autor e suas criaturas lidarem com isso são praticamente antagônicas.
Em Reanimator (152 páginas, R$ 54,90), o protagonista quer o mundo; em Mau Caminho (tradução de Diego Gerlach, 176 páginas, R$ 114,90), os personagens querem se isolar do mundo. Há raiva de um lado, desencanto no outro.
O protagonista de Reanimator é o rato Herbert West, que, à la Frankenstein, almeja trazer os mortos de volta à vida. Não por amor aos que partiram, mas por ambição: deseja ser reconhecido como o maior cientista de todos os tempos. Com o incentivo de um amigo porco, resolve testar sua fórmula em um morador de rua. O resultado? Dão início a um exército de zumbis tarados, a uma explosão de sexo grotesco, a um apocalipse regado por secreções.
Em Mau Caminho, a bruxa Megg, que sofre de depressão, e seu namorado, o gato preguiçoso Mogg, precisam dar um jeito de garantir a grana para o aluguel, para o álcool e para a maconha depois que o Coruja saiu da casa que dividiam. Ela vai tentar enganar a assistência social para manter o seguro-desemprego, ele, que vivia às custas do pai, terá de fazer algo que nunca fez na vida: trabalhar. Enquanto isso, o outro morador daquele lar todo zoado — em contraste com a estrutura rígida de 12 quadros por página adotada pelo autor —, o igualmente drogado Lobisomem Jones, sofre um apagão em uma orgia com dois amigos.
Uma diferença significativa entre as duas obras aparece no próprio trabalho de edição. Reanimator ganhou um intenso prefácio escrito pelo cartunista Rafael Campos Rocha, o autor de Deus, Essa Gostosa e de Kriança Índia, que já havia apresentado, também para a Veneta, uma obra inspiradora para Juscelino: Squeak the Mouse, o "Tom & Jerry para adultos" do italiano Massimo Mattioli (1943-2019). Nessa HQ, está presente a mistura de horror, sexo e violência vista na "homenagem" a Lovecraft feita pelo autor de Matadouro de Unicórnios e Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço. Justificando as aspas: em entrevista a Ramon Vitral, no site Itaú Cultural, Juscelino classificou o conto Herbert West — Reanimator como "uma merda", e Campos Rocha não se furta de elencar fraquezas do contista americano. Mas também enaltece sua permanência, suas intuições, "as veredas que ele mesmo abria a golpes desajeitados de marreta".
Uma introdução cairia muito bem em Mau Caminho. As duas páginas de recapitulação não resolvem, para o leitor brasileiro, o problema de tentar pegar o bonde de Megg e sua turma andando — lançado originalmente em 2019, esse é o sexto livro da série que nasceu em 2008, no Tumblr, como uma sátira da coleção britânica de literatura infantil Meg & Mog. Menos mal que Hanselmann é suficientemente talentoso — e talvez ciente de que o público pode descobrir sua obra de um modo aleatório — para, aos poucos, contextualizar as desventuras de seus personagens, todos representados como a sociedade os vê. Não é por acaso que Meleca, uma mulher trans, tenha a pele de um camaleão; não é por acaso que, ao ficar sóbrio, Lobisomem Jones assuma a forma de um homem comum.
E aí fica gritante outra oposição entre Reanimator e Mau Caminho. Por fazer uma paródia cáustica, Juscelino Neco não dá tanta bola para o desenvolvimento psicológico. Faz alguns instantâneos, mas não busca interiorização, pelo contrário: o que importa é a exposição, é botar o corpo dos personagens em ação, que vai assumindo um tom vertiginoso como se fosse, evidentemente, o de um orgasmo.
Hanselmann adota um ritmo mais contemplativo, com muitos momentos de inação. Sim, também há bastante sexo, alguma violência e um festival de drogas, mas, por baixo do choque, há carinho. Por baixo da podridão, há sensibilidade. Por baixo da carne, há um coração. Vários corações: toda a patota acaba gerando empatia. Os excessos cometidos são um flagrante pedido de ajuda. Cada personagem parece pensar apenas em si mesmo, mas torna-se evidente que precisam uns dos outros para superar dificuldades, traumas ou simplesmente a solidão. São desiludidos, mas sonham.