A leitura de Grama, poderosa e portentosa — são 488 páginas — história em quadrinhos da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim lançada no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim (tradução de Jae Hyung Woo, R$ 79,90), foi cruzada por duas reflexões recentes.
Em entrevista para divulgar o romance A Vida Mentirosa dos Adultos, a escritora italiana Elena Ferrante queixou-se que mesmo os homens cultos sequer tentam ler livros de autoria feminina, negando a essas a "dádiva da universalidade, que atribuem apenas a si próprios" — mulheres escreveriam somente para mulheres.
Uns meses antes, à época da estreia do filme O Homem Invisível, que em sua nova versão se transforma em um símbolo dos relacionamentos abusivos, a brasileira Dani Marino, mestre em Comunicação pela USP e uma das organizadoras do livro Mulheres e Quadrinhos (2019), reclamou da prevalência de narrativas ficcionais que sentenciam a mulher ao papel de vítima — como se só essa condição pudesse despertar um interesse masculino.
Grama é uma história escrita por uma mulher e protagonizada por outra, em mais uma trama de sofrimento, violência, silenciamento, anulação, trauma, a exemplo de outros quadrinhos "femininos" que tenho entre os melhores dos últimos tempos: Desconstruindo Una, da britânica Una, Duplo Eu, da francesa Navie, Minha Coisa Favorita É Monstro, da americana Emil Ferris, Bezimena, da sérvio-canadense Nina Bunjevac, e Juízo, da brasileira Amanda Miranda.
Será que nós, homens, ainda que não intencionalmente, ficamos atraídos por uma autora só quando ela resolve expor suas dores e seus fantasmas? É um voyeurismo perverso o que nos move e comove, como espectadores de um filme genérico de terror? Às mulheres não concedemos a honra de serem livres, engraçadas, empreendedoras, heroicas?
Bem disse a personagem interpretada por Jessie Buckley no filme Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020): há um risco ocupacional de ser mulher. São elas que dão à luz, mas as condenamos a viver à sombra dos homens. Escondidas involuntariamente ou simplesmente enclausuradas.
É isso o que acontece com a personagem principal de Grama, Ok-sun Lee, que narra suas memórias para Keum Suk Gendry-Kim. A tristeza e a secura das palavras são acentuadas pela arte em preto e branco, mas a quadrinista também enxerga a resiliência e mesmo a esperança da protagonista, simbolizadas pelos pássaros que volta e meia surgem nos desenhos — inclusive sobre o título da obra, que, por sua vez, alude à capacidade de a grama sempre se reerguer.
Ok-sun foi uma das tantas meninas vendidas pela própria família na infância, diante da pobreza avassaladora na Coreia dos tempos de domínio pelo império japonês, na primeira metade do século 20 — situação que durou até o fim da Segunda Guerra Mundial e que acabaria por dividir o país entre do Sul e do Norte. Muitas dessas meninas não se tornaram apenas escravas domésticas: também foram forçadas a virar escravas sexuais, como Ok-sun, para servir a soldados do Japão nas chamadas "casas de conforto" espalhadas pela Coreia e pela China.
Keum Suk evita a representação gráfica da violência. Mas não economiza em seu peso. A sequência em que Ok-sun descreve seu primeiro estupro — que é coletivo — ocupa oito páginas. Metade delas consiste somente de quadros pretos, 19 deles totalmente vazios e uns poucos servindo de suporte para algumas palavras que dão início à reflexão da protagonista sobre a dor e a humilhação. Ok-sun tinha 15 anos.
Grama retrata e sintetiza uma série de agressões e privações impostas às mulheres. Ok-sun não podia estudar porque isso era privilégio dos meninos. As oportunidades de trabalho eram restritas. E é sobre a vítima da violência sexual que recai a desonra.
Mas Grama, como diz sua autora no posfácio, não é só uma história sobre homens e mulheres, muito menos de mulheres para mulheres — "é sobre o significado de ser humano". E é também sobre a enorme e espantosa capacidade humana para a atrocidade, o momento em que a coletividade vira um monstro, como visto no massacre de Nanquim (China), em 1937, reconstituído em Grama, e em outras duas vigorosas HQs recentes que abordam a Segunda Guerra Mundial. A primeira é O Relatório de Brodeck, versão do francês Manu Larcenet para romance do escritor e cineasta Philippe Claudel, com um denso chiaroscuro que encontra eco na obra sul-coreana. A segunda, Heimat, da alemã radicada em Nova York Nora Krug, que, a exemplo de Keum Suk, mergulha em um capítulo bastante vergonhoso do passado de seu país — no caso, o nazismo e o Holocausto.
Contra tudo e contra todos (aí incluídos os soldados soviéticos ao fim da Segunda Guerra, o desamparo pelo governo e o preconceito da sociedade), Ok-sun se aferrou à vida. Resistiu para tentar refazer seus passos, em busca da família da qual havia sido apartada, e para contar sua história. Embora tenha dito a Keum Suk que nunca conhecera a felicidade, em seus depoimentos e nas suas lembranças há espaço para sorrisos e até senso de humor.
O que não há é lugar para o esquecimento. Para a resignação. Ok-sun transformou-se em uma das vozes de protesto para que o Japão peça desculpas e indenize adequadamente as "mulheres de conforto".
As últimas páginas do livro apaziguaram um pouco a minha consciência: Grama é a história de uma heroína.