Sabrina é uma história em quadrinhos escrita, desenhada e ambientada nos Estados Unidos. A francesa Prof. Fall se passa no país europeu e viaja para a África. Um oceano separa as duas obras, mas, para além de estarem sendo lançadas no Brasil pela mesma editora – a Veneta –, pode-se traçar muitos paralelos entre elas.
Para começar, Prof. Fall (tradução de Maria Clara Carneiro, 176 páginas, R$ 84,90) tem raiz literária – é a adaptação, por Ivan Brun, do homônimo romance independente de Tristan Perreton –, e Sabrina (tradução de Érico Assis, 208 páginas, R$ 119,90), do americano Nick Drnaso, tornou-se a primeira HQ indicada ao Man Booker Prize, um dos mais prestigiados troféus da literatura em língua inglesa.
Ambas são contemporâneas (a primeira é de 2018, e a segunda, de 2016) e abordam temas atuais que transcendem fronteiras. Sabrina se debruça sobre a política da desinformação e da paranoia, praticada ora por governos, ora por cidadãos e potencializada pelas redes sociais, e sobre o impacto disso tanto na sociedade quanto na vida de uma pessoa comum. Prof. Fall mergulha na depressão moderna, acentuada (ou provocada) pela ausência de laços afetivos e pelo excesso de concreto – a psicogeografia, o efeito do ambiente urbano sobre nossas emoções –, e critica o consumismo que, no final das contas, transforma os próprios seres humanos em mercadoria, como se fosse uma herança da escravidão colonialista.
Envolventes, as duas HQs lançam mão do suspense para conduzir essas reflexões, entrelaçando o drama pessoal às questões sociopolíticas. A trama de Sabrina parte do desaparecimento de uma jovem e sua investigação policial. Em Prof. Fall, o protagonista vira um detetive intrigado pela trajetória de um ex-mercenário que cometeu suicídio.
A propósito, em outra semelhança, o título das duas HQs não faz referência ao personagem principal. Sabrina é a moça desaparecida, mas o que Drnaso acompanha são as consequências para sua irmã, Sandra, seu namorado, Teddy, e um amigo dele, o militar Calvin, que acaba se tornando uma vítima do triunfo da mentira que marca nosso tempo. O Professor Fall é um misto de curandeiro e vidente africano procurado pelo burocrata Michel Morel, cada vez mais sufocado pelo desencanto com a civilização ocidental.
Por falar nisso, nos dois quadrinhos a queda das torres gêmeas ainda reverbera. Em Sabrina, Calvin e Teddy assistem a uma longa reportagem de TV sobre o Memorial e Museu do 11 de Setembro. Em Prof. Fall (queda, em inglês), Michel é obcecado pela imagem das vítimas que se jogaram das janelas do World Trade Center.
O americano Drnaso, 31 anos e autor da premiada Beverly (2016), e os franceses Brun, 49, e Perreton (ambos ligados à cena musical de Lyon, na França) retratam o apetite voraz da sociedade pela tragédia, pelo ódio, pela espetacularização da violência e pelas teorias conspiratórias. Quase como um contraste ao peso e à complexidade do que discutem, adotam uma certa apatia, uma morosidade na caudalosa narrativa.
A diferença, crucial, é que toda a história de Prof. Fall é contada por Michel, um longo monólogo interior com bastante digressões e mesmo delírios; o texto de Sabrina se constrói exclusivamente por meio de diálogos e reproduções (fictícias) de reportagens, programas de rádio e mensagens em fóruns de internet. O primeiro quadrinho tem um narrador não confiável, embora absolutamente verossímil em sua mistura de frustração e sentimento de superioridade. Drnaso mostra como confiamos demais no que nos convém – ao entrar em surto, o namorado de Sabrina vira presa fácil para discursos falaciosos e intolerantes, tal e qual acontece com quem acredita na tese do "vírus chinês" ou com quem nega os riscos da pandemia.
Outro contraste é o artístico. Sabrina aposta no minimalismo dos traços, em uma paleta de cores suave (que ajuda a transmitir a sensação de letargia) e na multiplicação dos quadros – há páginas divididas em 24 quadrinhos por Nick Drnaso. Apesar de ter uma quantidade incalculável de palavras, não raro permite-se abrir mão delas para descrever cenas e sentimentos. Prof. Fall, ao contrário, quase nunca deixa a arte falar por si só. Não chega a ser um problema, porque o texto é muito rico e fluente. Ivan Brun investe em desenhos carregados e sinistros, realçados pelo tom amarronzado e pela capacidade de fantasiar concedida pelo protagonista, volta e meia atormentado por pesadelos.
Ao final, Sabrina e Prof. Fall voltam a se aproximar. Tão perseguido quanto Michel, Calvin também tem sonhos ruins, mas enfim os personagens encontram algum tipo de libertação.