Jornalista que se tornou best-seller literário escrevendo sobre a História do Brasil com a trilogia formada pelos volumes 1808, 1822 e 1889 (publicados entre 2008 e 2013), Laurentino Gomes está de volta com uma nova série de livros de temática histórica. Escravidão – Volume 1 (Globo Livros, 504 páginas, R$ 40, em média) é o primeiro lançamento da nova trilogia, que deve ser completada em 2020 e 2021. Para autografá-lo e participar de um debate acerca da obra, Laurentino estará em Porto Alegre neste domingo. Ele é um dos astros do primeiro fim de semana de programação da Feira do Livro da capital gaúcha. Vai conversar com o público a partir das 16h30min e autografar o novo livro às 17h30min. Antes da viagem, concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH sobre a natureza de seu trabalho, a necessidade de conhecer a história do país e o tema que dá título ao livro – e que deixou feridas abertas na sociedade brasileira até hoje.
Quanto tempo de pesquisa vocês investiu nesse projeto? Informações relacionadas à escravidão são de fácil acesso?
Ao todo, foram seis anos de pesquisas, nos quais li quase 200 livros sobre o tema e viajei por 12 países em três continentes. Estive em Cartagena, na Colômbia, que foi o principal porto negreiro do antigo império colonial espanhol. Depois, percorri o sul dos Estados Unidos, cenário da Guerra da Secessão, em que mais de 750 mil pessoas morreram para que a escravidão fosse abolida pelo presidente Lincoln. Em seguida, morei em Portugal durante seis meses. A partir dali fiz cinco viagens a oito diferentes países africanos: Cabo Verde, Senegal, Marrocos, Angola, Gana, Benim, Moçambique e África do Sul. Também estive em Londres e Liverpool, na Inglaterra, que foram grandes centros de construção e financiamento de navios negreiros até o final do século 18. Além disso, percorri o Brasil, visitando, entre outros lugares, quilombos no Estado da Paraíba, usinas e engenhos de cana-de-açúcar em Pernambuco e na Bahia, a Serra da Barriga, em Alagoas, onde morreu Zumbi dos Palmares, o Vale do Paraíba, em São Paulo, as antigas minas de ouro e diamantes em Minas Gerais e o Cais do Valongo, que foi o maior porto negreiro das Américas no século 19. Em resumo, fiz uma reportagem jornalística de fôlego. As informações são de fácil acesso, mas é preciso saber procurá-las com cuidado e discernimento, porque o tema é complexo e a bibliografia, gigantesca.
Você mapeou os principais eventos da história do Brasil no século 19 com a trilogia 1808, 1822 e 1889. porém, tem como entender esse período sem estudar, primeiramente, o passado escravista brasileiro?
A escravidão é o fio condutor de todos os grandes eventos da história brasileira até, pelo menos, o final do século 19. Seria impossível entender os nossos principais ciclos econômicos – como os do açúcar, do ouro e do diamante e do café – sem estudar a dependência da economia brasileira em relação à mão de obra cativa. A escravidão aparece também como pano de fundo dos acontecimentos mais importantes, como a guerra contra os holandeses, a Independência e a Proclamação da República. Nas raízes africanas estão os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Elas moldaram a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestações quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas. Estudar essa herança escravista é, portanto, fundamental para entender a história do país e as dificuldades e características atuais.
E por que investir nesse projeto neste momento?
Escrever sobre a escravidão foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Estudar 1808, 1822 e 1889 – ou seja, as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19 – ajuda a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não é o suficiente para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso, é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo dos últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando até hoje. Acabei me dando conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e no modo como nos relacionamos com elas.
Pode-se dizer que o ensinamento da escravidão e do racismo no Brasil é secundário?
Até muito recentemente, a escravidão era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e na historiografia oficial. Isso não foi por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. O Brasil foi o maior território escravista da América. Recebeu, ao longo de 350 anos, quase 5 milhões de cativos, cerca de 40% do total de 12,5 milhões escravos africanos embarcados para o Novo Mundo. Foi também o país que mais tempo demorou para acabar com o tráfico negreiro, em 1850, e o último a abolir a própria escravidão, em 1888. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, diziam, porém, que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso enfrentar o seu legado, dando terra, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte, como mostram hoje todas as estatísticas e indicadores sociais. Em vez de incorporar esses brasileiros à sociedade civil, como cidadãos de plenos direitos, preferimos construir alguns mitos a respeito de nós mesmos, segundo os quais teríamos tido uma escravidão mais benévola, patriarcal e boazinha, o que também teria dado origem a uma grande democracia racial brasileira. São apenas mitos, mas apareciam com grande frequência nos livros didáticos e nas salas de aula. Felizmente, isso está mudando.
No livro, você diz que a escravidão sempre fez parte da história humana. Contudo, só a escravização de povos africanos movimentou 5 milhões de vidas negras para o Brasil. O que teve de diferente a escravidão das sociedades desse continente em específico?
Infelizmente, a escravidão parece fazer parte do código genético do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África antes da chegada dos europeus. No passado distante, escravidão nem sempre foi sinônimo da cor da pele. Até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era constituída por pessoas brancas. A própria palavra “escravo” – slavus, em latim; slave, em inglês – deriva de “eslavo”, povo branco, de olhos azuis, que desde a antiguidade era escravizado no leste europeu e vendido na região do Mar Mediterrâneo. Essa associação do escravismo ao negro foi construída pelos brancos europeus durante o período colonial. É isso que diferencia a escravidão africana das demais. Na história da escravidão negra no Atlântico está o nascimento de uma ideologia racista, criada para legitimar o tráfico negreiro, que procurava associar os africanos à imagem de selvageria, barbárie e à prática de religiões demoníacas. Nas bases teóricas para legitimar a escravidão há bulas papais, textos e sermões religiosos. A mais antiga e recorrente justificativa teológica para a escravização dos africanos é a chamada “Maldição de Cam”, baseada em um trecho da Bíblia. Segundo o capítulo nove do Gênesis, depois do dilúvio, Noé se tornou agricultor e começou a produzir vinho. Certo dia, embriagou-se e dormiu sem roupa. Cam, seu filho mais novo, viu a nudez do pai e, em vez de cobri-lo com o manto, correu contar aos dois irmãos. Ao acordar e ouvir a história, Noé lançou uma maldição contra a descendência de Cam, citando especificamente seu filho Canaã: “Maldito seja Canaã. Que se torne o último dos escravos de seus irmãos”. Segundo a tradição, os descendentes de Canaã teriam ido para a África, onde se tornariam escravos até o fim dos tempos. Foi a desculpa usada durante todo o período colonial brasileiro para justificar a escravização.
A escravidão ainda está viva entre nós. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, dominadas pelo crime organizado, sem qualquer assistência do Estado. Na maioria, são afrodescendentes.
Há um legado histórico de opressão da população negra no país, acentuado, por exemplo, com a chegada dos imigrantes europeus ao Brasil. Como você lida com isso, na posição de descendente desses imigrantes?
Trato disso logo na introdução do livro. Pelo lado materno, sou descendente de emigrantes italianos que, fugindo da fome e da falta de oportunidades na Itália, chegaram ao Brasil no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo. Pelo lado paterno, tenho um bisavô que foi republicano e abolicionista na cidade de Brasópolis (MG). Minha história, portanto, também tem a ver com a escravidão. Além disso, acho que esse tema deveria interessar e merecer as preocupações de todos os brasileiros, independentemente da cor da pele. Há um legado da escravidão que persiste entre nós na forma de preconceito racial e desigualdade social. Sendo assim, todos deveríamos estudar e refletir sobre o assunto. Mas acho também que, na história da escravidão, há diferentes possíveis olhares: os olhares negros, os olhares brancos e os olhares atentos. Me esforço para ser parte desse terceiro grupo. Agora, caberá aos leitores julgarem se fui bem-sucedido nesse desafio. Também acredito que a riqueza da disciplina de história está na possibilidade de múltiplas narrativas, leituras e interpretações. O meu é um entre muitos outros possíveis olhares sobre o tema. Ao mesmo tempo, preciso reconhecer que minhas raízes e referências culturais de certa forma condicionam e limitam o meu olhar.
De que maneira a escravidão ainda se manifesta na agenda política brasileira?
A escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está viva entre nós e pode ser observado na paisagem e nos números. Somos um dos países mais segregados do mundo, na geografia e nas estatísticas. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, dominadas pelo crime organizado, sem qualquer assistência do Estado. Na maioria, são afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres” são habitados por descendentes de colonizadores europeus brancos. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarçá-lo com os mitos de que seríamos uma grande e exemplar “democracia racial” e que a escravidão entre nós teria sido mais branca, patriarcal e tolerante do que em outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados.
Como o Brasil tem enfrentado e como deveria enfrentar o racismo?
O Brasil tem feito esforços genuínos na criação de leis e instituições para combater o racismo. Mas ainda há muito a ser feito. A ideologia racista, usada no passado para justificar o tráfico negreiro, permanece ainda hoje oculta nas formas preconceituosas de relacionamentos entre brancos e negros no Brasil. Isso faz com que, por exemplo, nas 500 maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência sejam ocupados por negros. Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões qualificadas, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professor de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%). No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades aos negros, explica essas diferenças. Ou seja, o verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras ou afrodescendentes. É o famoso racismo estrutural.
O verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras. É o famoso racismo estrutural.
É possível vislumbrar mudanças estruturais na sociedade brasileira?
O Brasil passa por uma experiência inédita em sua história, que são mais de três décadas de democracia, sem ruptura. É uma jornada difícil, com altos e baixos, com frustrações, sustos e surpresas, mas é também a primeira vez em que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. Democracia não é uma fórmula mágica, capaz de resolver todos os nossos problemas instantaneamente. Estamos aprendendo a exercitar a democracia. Também pela primeira vez temos a oportunidade de tratar de assuntos difíceis e delicados, como é o caso da escravidão. Mas me preocupa muito o ódio com que essas discussões têm sido travadas. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Fiquei assustado com a falta de sensibilidade que Jair Bolsonaro demonstrou, ainda na campanha eleitoral de 2018, ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres. E esse discurso de ódio e enfrentamento rendeu votos. Eu esperava que, passada a eleição, o discurso, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo.
Bolsonaro afirmou, em 2018, que os portugueses não pisaram na África e que os próprios negros foram responsáveis pelo tráfico. Como você interpreta esse tipo de declaração?
A participação dos africanos no tráfico de escravos se tornou um tema explosivo no Brasil. Obviamente, os portugueses entravam, sim, na África. Ocuparam e colonizaram Angola, um território enorme, para abastecer o tráfico negreiro. Mas essa discussão pode ter consequências políticas muito ruins. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada ter a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Não podemos nos esconder atrás de falsas discussões a respeito de fatos históricos. Por fim, há um enorme equívoco de natureza conceitual nesse raciocínio. Dizer hoje que africanos escravizavam africanos é o que os historiadores chamam de anacronismo, ou seja, o uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens ou fatos de outra. A noção de uma identidade pan-africana, que unisse os habitantes de todo o continente, ainda não existia na época do tráfico de escravos. Ninguém se reconhecia como africano. A África sempre foi um território de grande diversidade, habitado por uma miríade de povos.
Trazer à tona fatos históricos tem sido suficiente para combater a desinformação?
A melhor maneira de enfrentar a desinformação é ajudar a sociedade a se manter informada, com capacidade crítica para tomar decisões que dizem respeito aos seus interesses. O estudo de história pode dar uma contribuição importante para isso. Uma sociedade que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo porque desconhece suas raízes. Como não sabe de onde veio, provavelmente também não saberá o que é hoje e muito menos o que será no futuro.
Que desafios são impostos ao pesquisador na era da pós-verdade?
A era da pós-verdade afeta de modo particularmente o jornalismo, a profissão que exerço há 42 anos. Os jornalistas e o jornalismo estão sob ataque cerrado no mundo inteiro. Isso é parte de projetos ideológicos poderosos, de esquerda e de direita, que, para serem bem-sucedidos, dependem de uma sociedade desinformada e vulnerável. Como se defender disso? Acho que, mais do que nunca antes, precisamos ser consistentes na pesquisa, honestos e transparentes no nosso trabalho. A nossa salvação estará sempre na qualidade, na credibilidade e na relevância do conteúdo que produzimos. É o que procuro fazer como autor de livros-reportagem sobre história do Brasil. E o jornalismo e a história não são disciplinas tão diferentes quanto se imagina. No fundo, o objetivo tanto do jornalista quanto do historiador é chegar o mais próximo da verdade dos acontecimentos e de seus personagens. A técnica, o método e a abordagem teórica podem ser diversos, mas a busca pela verdade é a mesma.
Você se identifica como jornalista, escritor ou historiador?
As pessoas às vezes me perguntam se, pelo fato de deixar o trabalho nas redações e virar escritor, eu mudei de profissão. Não. Eu continuo sendo o jornalista que sempre fui nessas últimas décadas. Não mudei de profissão, apenas de formato. Antes fazia reportagens para jornais e revistas. Hoje, escrevo livros-reportagens, mas o olhar e o método de trabalho continuam os mesmos. Isso inclui, por exemplo, uma grande atenção aos detalhes na hora de escrever e editar um livro. É preciso escolher uma boa capa, fazer um título e um subtítulo atraentes, caprichar nas legendas das ilustrações, usar recursos visuais como mapas, infografias e linhas do tempo. É preciso, principalmente, um grande cuidado no texto, de modo a organizar uma história capaz de atrair e reter a atenção dos leitores, sem nunca deixá-la monótona ou previsível. São todas técnicas e ferramentas que a comunidade jornalística desenvolveu ao longo de muitas décadas e que eu procuro, agora, aplicar nos meus livros.
Na Feira do Livro de Porto Alegre
Escravidão – Volume 1 terá sessão de autógrafos às 17h30min deste domingo (3), na Feira do Livro da capital gaúcha. Antes, às 16h30min, no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, o autor participa de conversa com o público. A Feira se estende até o dia 17, com debates e sessões de autógrafos diários na Praça da Alfândega e no seu entorno, no centro da Capital. Acompanhe a cobertura diária aqui e confira a programação deste fim de semana no caderno Fíndi. Outras informações em feiradolivro-poa.com.br.