A bandeira contra o racismo, levantada a partir do encontro entre os dois únicos negros treinando clubes da Série A do Brasileirão no sábado passado (12), virou assunto na Europa. O jornal inglês The Guardian publicou na quinta-feira (17) uma grande reportagem a ação conjunta entre Marcão, do Fluminense, e Roger, do Bahia, que abraçaram publicamente o que fazem nos bastidores de seus clubes, tendo respaldo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
GaúchaZH fez uma entrevista exclusiva com Roger, 44 anos, gaúcho de Porto Alegre e ex-lateral do Grêmio, que surpreendeu o país com seu discurso contundente em defesa dos negros e moradores de periferias. A seguir, a íntegra da conversa na qual o ex-lateral gremista revela um desejo: que o combate ao racismo ganhe, de imediato, a adesão de colegas brancos. E vai além: argumenta que o Estado está negligente em relação à Educação, especialmente para as crianças.
O menino Roger foi vítima de racismo?
Me senti discriminado muitas vezes. A gente morava no bairro Mont'Serrat, mas em uma região que foi reduto quilombola, em Porto Alegre. Na escola, eu era um dos poucos negros. Ao entrar no mercado, para comprar algo que a mãe tinha pedido, via o segurança me seguindo com os olhos para onde quer que eu fosse. No parque, no lado voltado para as caminhadas, só havia brancos. Eu ia para o lado onde havia quadras de esporte, aí me identificava.
O jogador Roger deparou cedo com ambientes racistas?
No futebol, coincidentemente ou não, graças à capacidade e ao talento com a bola nos pés, a gente é rapidamente aceito e empoderado. O preconceito tem relação direta com o tom da pele, com o fenótipo. Eu, por não ter cabelo tão enrolado, o nariz menos achatado e os lábios não tão grossos, pois tenho mistura de branco e índio, me sentia menos discriminado do que colegas com traços tradicionais do negro. Muitas vezes, pelo Grêmio, no interior do Rio Grande do Sul, onde há cultura europeia bem desenvolvida, ouvi manifestações racistas. Mas, pelo fato de a bola mostrar o talento do negro, o futebol "embranquece" a gente um pouco. Nos torna um pouco mais aceitos, permitindo que circulemos por vários ambientes.
O treinador Roger levanta agora essa bandeira como resultado de toda esta vivência no vestiário e fora dele. Mas você agrega às experiências pessoais muito estudo, certo?
É um pouco de tudo. Estou na idade em que o físico não tem mais tanta força e passa a predominar a consciência. Então, começo a refletir e a não ter receio de adotar posturas e posicionamentos que, quando mais jovem, tinha medo do embate e do enfrentamento. Até para não entrar em rota de colisão com outros pensamentos pré-estabelecidos. Estar no Bahia também me encorajou e empoderou. O clube, com a atual direção, discute e faz ações voltadas para questões sociais. Além disso, me senti incomodado ao perceber que só dois treinadores negros estão hoje na elite do Campeonato Brasileiro. É a prova de que existe algo errado. É preciso, pelo menos, debater e deixar de negar que há preconceito. Repito o que disse naquele sábado: negar e silenciar não é o caminho. É preciso resolver esta mazela que atinge muitos grupos de pessoas.
Muitas vezes, pelo Grêmio, no interior do RS, onde há cultura europeia bem desenvolvida, ouvi manifestações racistas. Mas, pelo fato de a bola mostrar o talento do negro, o futebol "embranquece" a gente um pouco. Nos torna um pouco mais aceitos, permitindo que circulemos por vários ambientes.
ROGER MACHADO
Técnico do Bahia
Gostaria que esse seu apelo tivesse adesão de colegas brancos, da CBF e de outras entidades não ligadas ao futebol?
Sim, gostaria da adesão de colegas, da CBF e do Estado. Principalmente de organismos que hoje atuam no poder. Aceitar que o racismo existe e criar campanhas para debatê-lo é só o caminho a ser tomado. Temos de fazer mais: achar soluções conjuntas e eficazes. A responsabilidade é de todos nós. Não se deve culpar alguém. Vivemos em uma estrutura preconceituosa há séculos. Eu tenho dentro de mim, de certa forma, alguns preconceitos. E trabalho constantemente para evoluir.
Por que há tantos craques negros dentro de campo, mas são raros os que viram treinadores?
A estrutura do futebol tem os mesmos preconceitos da sociedade. A grande maioria dos atletas ascende da classe social mais baixa. Com a bola nos pés, divertimos as multidões com nossa habilidade. O processo da escravidão se deu como? Imaginando que o negro era intelectualmente menos desenvolvido. Mas como era forte fisicamente, criativo e habilidoso, foi usado como mão de obra de trabalho. Quando esse indivíduo que passou pelo campo resolve ascender na estrutura hierárquica, onde o intelecto será mais exigido, e não mais sua habilidade artística, em geral, se entende que não tenha capacidade para comandar. E mais: não seria seu lugar de direito.
Quando falas em preconceito institucional, de algum modo apontas teu clamor aos políticos também?
É dever do Estado brasileiro gerar políticas públicas para inserir as populações que tiveram, durante muito tempo, desvantagem na corrida social. Essa é a premissa do Estado. Fala-se muito em meritocracia, como se todos tivessem tido igualdade de condições. E isso não é verdade. Criatividade e boa vontade política resolvem problemas. E os meios de comunicação e a Igreja têm poder também por determinar diretrizes. É preciso propor ações de fato. Não se pode reforçar os estereótipos. Não adianta cada classe aceitar sua cota de responsabilidade e não desejar, conjuntamente, a redução do problema. Temos de aceitar que o assunto é sério, sentar e conversar.
Há estudos que comparam a evolução de brancos e negros. Até o 4º ano do Ensino Fundamental, 60% são considerados negros. No Ensino Médio, esse percentual cai para 30%. Por que isso? O negro fica para trás, muitas vezes, por barreiras impostas pelo Estado que não o assistiu. Isso impacta decisivamente no desenvolvimento na infância e na adolescência.
ROGER MACHADO
Técnico do Bahia
Na tua manifestação, alegaste que o mito da democracia racial no Brasil contribui para a negação do racismo. Como imaginas mudar esse cenário?
Preocupa-me o fato de o Estado determinar as regras do que se aprende nas escolas. Lembro quando eu era criança: nas aulas de história, falava-se muito bem das imigrações italiana e alemã no Brasil. Sobre a escravidão, dizia-se que eram indivíduos que, por sua força de trabalho, vieram ajudar a desenvolver o país, mas sempre numa condição secundária. Isso não ajuda na autoestima. Gera um estereótipo fazendo com que o negro, na vida adulta, não se sinta merecedor das oportunidades que possa vir a receber dentro de uma democracia racial – que é um mito. O preconceito é estrutural, infelizmente.
De que forma enxergas o impacto nocivo do racismo quando ele ocorre desde a infância?Recebi há pouco um envelope com redações de crianças de um colégio público do bairro Mario Quintana (Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Victor Issler), que chegaram aqui no hotel por meio do Paulo Paixão (preparador físico do Bahia que já atuou em Grêmio e Inter). Os alunos trabalharam esse tema motivados pela minha entrevista no Maracanã. São relatos de sofrimento por questões de preconceito. Isso me emociona (nesse momento da entrevista, Roger fica com os olhos marejados). Em periferias, o único braço do governo que entra é o da polícia. E entra para reprimir. Isso gera um impacto nocivo na autoestima da criança. Fica gritante a desigualdade. Criança da periferia evade muito mais da escola. Muitas vezes o pai é ausente, a mãe precisa trabalhar, os menores ficam na rua, em contato com gente boa, outras nem tanto. Há estudos que comparam a evolução de brancos e negros. Até o 4º ano do Ensino Fundamental, 60% são considerados negros. No Ensino Médio, esse percentual cai para 30%. Por que isso? O negro fica para trás, muitas vezes, por barreiras impostas pelo Estado que não o assistiu. Isso impacta decisivamente no desenvolvimento na infância e na adolescência. Ao chegar à vida adulta, de novo pelo mito da democracia racial, o indivíduo pode se sentir culpado e não merecedor de uma profissão mais digna. E mesmo os que sobrevivem às barreiras terminam recebendo salários menores na comparação com os brancos, ainda que com as mesmas qualificações. Para aí! Ou a gente para agora e entende o porquê disso, ou teremos problemas ainda mais graves. É fruto da ignorância? Que bom se for isso, pois ignorância se pode eliminar. Ou é hipocrisia e não queremos ver? Ou de fato somos preconceituosos? Os números mostram muita desigualdade. Mas, nos últimos 15 anos, o Brasil teve avanços substanciais. As camadas mais pobres tiveram mais acesso à educação e a bens de consumo. Mas esse processo brecou. E a gente precisa fazer essa roda voltar a girar.
Menos crianças sofrendo preconceitos, mais treinadores negros na elite do futebol?
Mais treinadores, mais médicos, mais engenheiros negros ou oriundos da periferia vão aparecer, com certeza. Faltam referências positivas para os pobres e negros. Quando eu era criança, quis ser jogador porque vi meu tio e meu irmão mais velho ascenderem socialmente no futebol. Na adolescência, senti vontade de ser professor porque minha irmã, a muito custo, cursou Letras e trabalhava bastante. Pude olhar e idealizar sonhos para a minha vida adulta. Infelizmente, na periferia, quem costuma ser referência de sucesso é o traficante. Isso precisa mudar.
Além do envelope dos alunos da escola do bairro Mario Quintana, que outras consequências já tens percebido após tua manifestação?
Pude perceber que o futebol é um mecanismo de transformação. É uma ferramenta que pode ser usada de diversas formas. E, para mim, a forma mais impactante é a da transformação social. Então, tenho o dever de seguir, no mínimo, expondo meus pontos de vista, graças à minha experiência dentro do futebol, que é um microrganismo dentro da sociedade, com regras muito parecidas. Por exemplo: amparado pelo estigma da paixão, o estádio de futebol parece autorizar e legitimar manifestações preconceituosas.
Ter sido multicampeão dentro do campo me alegra muito, claro, mas meu maior orgulho é poder educar minhas duas filhas e transformá-las em pessoas com empatia com problemas alheios. Não podem ficar alheias a determinadas questões, mesmo que não as atinjam diretamente.
ROGER MACHADO
Técnico do Bahia
Manifestações de preconceito já interromperam vários jogos de futebol. Estudam-se punições para clubes, com perda de pontos na tabela. A punição ajudará a reduzir o problema?
Punição é uma ferramenta importante, mas a educação é mais forte. Por isso o empoderamento dos professores é algo importante, com política salarial adequada. No Brasil, são mal remunerados. E todo o ciclo de transformação social fica prejudicado. Isso precisa mudar. Não há bons profissionais sem bons mestres.
Tu podes virar ídolo de uma geração a partir da tua postura, e não apenas por conquistar taças.
Vou ficar imensamente feliz se, no final da vida, eu puder ter contribuído, através do futebol, para transformações sociais. Com minha manifestação após o jogo contra o Fluminense, não imaginei o alcance que minha voz teria, mas percebi como a população discriminada carece de vozes mais ativas e contundentes. E que estejam de forma empática ligadas a esse contexto. Ter sido multicampeão dentro do campo me alegra muito, claro, mas meu maior orgulho é poder educar minhas duas filhas e transformá-las em pessoas com empatia com problemas alheios. Não podem ficar alheias a determinadas questões, mesmo que não as atinjam diretamente. Passeando no condomínio com minha filha menor, me pararam para elogiar minha manifestação. Então, perguntei para a Gabriela: "O que tu achou?". Ela disse: "Pai, tenho muito orgulho de ti". Isso, para mim, é o melhor de tudo. E que elas possam ajudar com a educação de outros no futuro. Educar é nobre. A gente educa, principalmente, pelo exemplo. E hoje, infelizmente, o Estado brasileiro é um mau exemplo para o povo.