A discussão sobre racismo no país mudou de patamar desde sábado (12) à noite. Técnico do Bahia, Roger Machado, 44 anos, surpreendeu ao fazer um manifesto forte contra a discriminação racial dentro e fora do futebol. Na entrevista após o jogo contra o Fluminense, o treinador gaúcho falou com desenvoltura sobre um tema que costuma ser tratado de forma superficial por quem representa clubes no Brasil.
Em menos de cinco minutos, falou de história, de cultura, de política, trouxe dados da ONU, criticou a omissão do poder público e convocou a sociedade a abraçar o combate ao racismo, especialmente ao que atinge negros. A manifestação foi um dos assuntos mais comentados e compartilhados nas redes sociais no final de semana. E mais: Roger deve receber o título de cidadão baiano, honraria conferida pela Assembleia Legislativa da Bahia.
Em 43 minutos de conversa exclusiva com GaúchaZH, Roger mostrou sua inconformidade com o passado, preocupação com o presente e desejo de mudar o futuro. Ainda surpreso com a dimensão de sua fala no Maracanã após o jogo que marcou o encontro dos únicos dois técnicos negros a Série A do Brasileirão (o ex-volante Marcão deixou há poucos dias a função de auxiliar e foi efetivado no Fluminense), o treinador está assimilando que, a partir de sua posição de ídolo, tem muito a contribuir.
Para isso, lê muito, estuda, debate. Nesta entrevista, relembrou situações amargas de infância, valorizou a importância da família, mostrou esperança em ver instituições se unindo contra o racismo e se emocionou ao exaltar a importância da Educação na formação das crianças.
O menino Roger foi vítima de racismo?
Me senti discriminado muitas vezes. A gente morava no bairro Mont'Serrat, em uma parte que foi reduto quilombola em Porto Alegre. Na escola, eu era um dos poucos negros. Ao entrar no mercado, para comprar algo que a mãe tinha pedido, via o segurança me seguindo com os olhos para onde quer que eu fosse. No parque, no lado voltado para as caminhadas, só havia brancos. Eu ia para o lado onde tinha quadras de esporte e aí me identificava.
O jogador Roger deparou cedo com ambientes racistas?
Quando você chega ao ambiente do futebol, coincidentemente ou não, pela nossa capacidade e talento com a bola nos pés, a gente é rapidamente aceito e empoderado. O preconceito tem relação direta com o tom da pele, com o fenótipo. Eu, por não ter cabelo tão enrolado, o nariz não tão achatado e os lábios não tão grossos, pois tenho mistura de branco e índio, me sentia menos discriminado do que colegas com traços tradicionais do negro. Mas muitas vezes, pelo Grêmio, a gente ouvia no interior do Rio Grande do Sul, onde há cultura europeia bem desenvolvida e manifestações racistas. Mas pelo fato de a bola mostrar o talento do negro, o futebol embranquece a gente um pouco. Te torna um pouco mais aceito e permite que circule por vários ambientes.
A ideia de levantar esta bandeira agora é um sinal de toda esta vivência no vestiário e fora dele? É efeito das horas que dedicas à leitura de temas sociais?
É um pouco de tudo. Estou na idade em que o físico não tem tanta força e passa a predominar a consciência. Então, começo a refletir e não ter receio de adotar posturas e posicionamentos que, quando mais jovem, tinha medo do embate e do enfrentamento para não entrar em rota de colisão com outros pensamentos pré-estabelecidos. Estar no Bahia também me encorajou e empoderou. O clube discute e faz ações voltadas para questões sociais. E me senti incomodado também por perceber que só dois treinadores negros estão na elite. É a prova de que existe algo errado. É preciso, pelo menos, debater e deixar de negar que há preconceito. De alguma forma todos nós temos preconceito. Negar e silenciar não é o caminho. É preciso resolver esta mazela que atinge muitos grupos.
Gostaria que este seu apelo tivesse adesão de colegas brancos, da CBF e de outras entidades?
(pausa) Gostaria sim. Principalmente de organismos que hoje atuam no poder. Aceitar que existe e criar campanhas para debate é só o caminho. Temos de achar soluções conjuntas. A responsabilidade é de todos nós. Não é culpar ninguém. Vivemos de uma estrutura preconceituosa, tenho preconceitos dentro de mim e trabalho para evoluir.
Quando tu falas em preconceito estrutural e institucional, apontas tua convocação aos políticos?
É dever do Estado brasileiro gerar políticas públicas para inserir as populações que tiveram, durante muito tempo, desvantagem na corrida social. Essa é a premissa do Estado. Se fala muito em meritocracia como se todos tivessem tido igualdade de condições. E isso não é verdade. Criatividade e boa vontade política resolvem problemas. E os meios de comunicação têm poder também por determinar diretrizes. É preciso propor ações de fato. Não se pode reforçar os estereótipos. Não adianta cada classe aceitar sua cota de responsabilidade e não desejar, conjuntamente, a redução do problema. Temos de aceitar que o assunto é sério, sentar e conversar.
De que forma te preocupa o impacto nocivo do racismo na infância?
Recebi há pouco redações de crianças de uma escola pública do bairro Mario Quintana. Fizeram este tema motivado pela minha entrevista no Maracanã. São relatos de sofrimento por questões de preconceito. Isso me emociona (fica com os olhos marejados). Neste lugar, o único braço do governo que entra é o da polícia. E entra para reprimir. Isso gera um impacto nocivo na autoestima da criança.
Menos crianças sofrendo preconceitos, mais treinadores negros na elite do futebol?
Mais treinadores, mais médicos, mais engenheiros oriundos de periferias vão aparecer, com certeza. Faltam referências positivas para os pobres e negros. Quando eu era criança, tinha meu irmão mais velho como exemplo de jogador. Depois, pensei em ser professor, porque minha irmã era professora. Pude olhar e idealizar. Infelizmente, na periferia, referência de sucesso é o traficante.
Preconceito já interrompeu jogo de futebol no Brasileirão e clubes poderão perder pontos. A punição ajudará a reduzir o problema?
Punição é uma ferramenta importante, mas a educação é mais forte. Por isso o empoderamento dos professores é algo importante, com política salarial adequada. No Brasil, são mal remunerados. E todo o ciclo de transformação social fica prejudicado. Isto precisa mudar. Não há bom profissional sem bons mestres.