Graça Machel é a voz de uma África que insiste em mostrar-se ao mundo, mesmo que o mundo vire o rosto. A mulher de olhar profundo e palavras pronunciadas calmamente materializa em sua vida as principais lutas do continente nos séculos 20 e 21: contra o preconceito, a segregação, o machismo, a violência e a invisibilidade.
Na sala de aula, era a única negra entre 40 alunos. Em uma universidade de Lisboa, estudou Filologia Germânica. Aos 25 anos, juntou-se à Frente pela Libertação de Moçambique (Frelimo) como guerrilheira e marchou para a expulsar de seu país as forças coloniais portuguesas. Foi ministra da Educação e da Cultura entre 1976 e 1989. Nomeada pela ONU para o Estudo do Impacto dos Conflitos Armados na Infância, recebeu a Medalha Nansen das Nações Unidas, em 1995.
Ela também foi casada com dois mitos africanos: Samora Machel (1933–1986), primeiro presidente de Moçambique, e Nelson Mandela (1918–2013), da África do Sul. Na segunda-feira (13/5), abriu o ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento 2019. Antes, concedeu a seguinte entrevista a ZH.
A passagem do furacão Idai por Moçambique, que deixou mil mortos e afetou mais de 3 milhões de pessoas, recebeu pouca atenção da mídia em geral e brasileira em particular. Por que a África ainda é invisível para o Ocidente?
Há dois fatores. O primeiro é que a África não tem pujança nos órgãos de comunicação para se projetar, para se colocar no mapa do mundo. Uma parte do problema é nosso, africano. Outra parte é que as grandes agências de comunicação globais têm seus interesses virados para outros continentes. A África é um continente para o qual se vai buscar dinheiro. Não é um continente no qual se buscam notícias. Repare que temos, nos últimos tempos, uma presença significativa de empresas globais, mineradoras, de setores de petróleo e gás e das telecomunicações. Não é falta de presença de multinacionais. Só que o interesse, lá, é só o dinheiro. Ao passo que o que o acontece na Europa é notícia. O que ocorre na China também, porque o país está abalando o poderio econômico dos EUA. A Coreia do Norte também se tornou um fator mobilizador. Eles passam fome lá, mas é preciso olhar para aquela gente porque pode provocar uma catástrofe global. O Brasil e a América Latina, com a força que têm, também constituem um caso para se prestar atenção. Se olhares a CNN, o continente latino-americano não aparece. Essas são grandes questões que vocês, que estão na comunicação social, devem levantar. No final, há aqueles que são apenas fontes para enriquecimento de quem já é rico. Mas as pessoas não contam? Suas histórias, suas visões de mundo?
A senhora tinha ligações com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com integrantes do governo do PT. Continua acompanhando a realidade brasileira?
Um pouco. Apesar de nós pertencermos à grande família dos países de língua portuguesa, sabemos pouco uns dos outros. Mesmo dentro dessa família. Não há curiosidade de identidade acima dos tais interesses econômicos. Não há interesse genuíno de dizer que, sim, Cabo Verde, Angola e Moçambique são parte dessa família. Que povos são esses? O que fazem? Quais são suas histórias? Quais são suas contribuições para a humanidade? Nem dentro da família (das nações reunidas na CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) temos essa curiosidade. Alguma coisa está muito errada. Quando dizemos o valor, os “sentidos da vida” (tema do Fronteiras do Pensamento 2019)... Os sentidos da vida têm de ser definido pelas pessoas, pela História, pela sua cultura, pela maneira como se afirmam, como contribuem. Afinal de contas, parece que há uns que são mais importantes do que outros. Há milhões de pessoas que não contam.
A África é um continente para o qual se vai buscar dinheiro. Não é um continente no qual se buscam notícias. Repare que temos, nos últimos tempos, uma presença significativa de empresas globais, mineradoras, de setores de petróleo e gás e das telecomunicações. Não é falta de presença de multinacionais. Só que o interesse, lá, é só o dinheiro. Ao passo que o que o acontece na Europa é notícia.
Durante os governos do PT havia um alinhamento entre Brasil e países africanos na chamada política externa Sul-Sul. Hoje, estão distantes?
O mundo deve muito aos governos Lula e Dilma. Não foi alinhamento, só. Foi intencional aproximar-se, identificar-se com os países irmãos. Esses dois governos se identificaram profundamente com as lutas dos países do Hemisfério Sul. Lula fez questão de levar empresas brasileiras e dizer: “Nós temos aqui know-how, expertise, que é importante oferecer aos países africanos. Ao mesmo tempo em que temos de buscar nos países africanos aquilo que podem ser lições mútuas de desenvolvimento”. Há países africanos que, embora não sejam tão desenvolvidos quanto o Brasil, não têm níveis de desigualdade que o Brasil tem. Portanto, alguma coisa boa eles estão fazendo lá que o Brasil não está fazendo aqui. Não era uma questão apenas de dizer que o Brasil tem só a oferecer, mas o Brasil tinha lições para trazer de países africanos. Um exemplo: por que os países africanos têm índices muito elevados de participação de mulheres nos órgão de decisão, quer seja no parlamento ou no governo? Alguma coisa boa eles estão fazendo para compreender a centralidade da participação da mulher nos órgãos de decisão nos parlamentos, governos e mesmo no Judiciário. Lula tinha compreensão disso, de que era preciso ir beber dessa experiência.
A senhora se decepcionou com a prisão de Lula?
Não estou apenas decepcionada. Estou profundamente magoada.
Com quem?
Estou profundamente magoada pela injustiça que se está praticando aqui ao prender Lula. Sou daqueles brasileiros e africanos que acham que isso é uma tremenda injustiça. Que isso não tem nada a ver com as coisas que se dizem, corrupção. Lula tem um pecado de nascença: ele, sua origem, suas lutas, suas abordagens de desenvolvimento. Isso fez com quem que ele tenha sido encarcerado.
Estou profundamente magoada pela injustiça que se está praticando aqui ao prender Lula. Estamos sentindo profunda tristeza com o fato de a América Latina em seu conjunto, e o Brasil, particularmente, estarem se virando para a direita de uma forma que faz retroceder muitos ganhos sociais que haviam conseguido.
Mas e as denúncias de corrupção?
Não. Ele está sendo encarcerado porque aqui, no Hemisfério Sul, as forças da direita, conservadoras, levantaram-se de forma tremenda.
O que a senhora acha do presidente Bolsonaro?
Não quero falar de presidentes de outros países. Pode parecer um pouco... Não quero falar. Quero dizer que estamos sentindo profunda tristeza com o fato de a América Latina em seu conjunto, e o Brasil, particularmente, estarem se virando para a direita de uma forma que faz retroceder muitos ganhos sociais que haviam conseguido. Isso está sendo mudado. E isso nos deixa profundamente preocupados. Estamos pensando: “O que os povos dessa região vão fazer?”. Porque, no fundo, é vocês que têm de mudar as coisas. Quem vota neles? Não se pode ficar complacente. Quando se fica complacente, os progressos podem retroceder. E é isso que está acontecendo. O eleitorado brasileiro tem de se questionar. Há de começar a doer. Fui informada de que houve cortes de 30% para instituições de Ensino Superior. O que é isso? No início do século 21, dar uma machadada tão profunda nas instituições que preparam em nível mais alto os jovens que têm de compreender, gerir e dirigir as lutas do século 21? Isso é mais do que apenas direcionado a esses jovens. É o futuro dessa sociedade que está sendo cortado. Por quê? Acho que está na hora de os brasileiros se perguntarem: “O que aconteceu conosco, que, depois de termos conseguido tantos progressos, optamos por retroceder?”. Porque é preciso assumir essa responsabilidade. A responsabilidade é dos cidadãos.
A humanidade anda carente de líderes, como os que a senhora conheceu de forma tão próxima – Samora Machel (primeiro presidente moçambicano após a independência do país) e Nelson Mandela (com quem Graça Machel se casou depois).
Os líderes são produtos de seu tempo e das lutas do seu tempo. Se Nelson Mandela não tivesse nascido e vivido em uma realidade que era a do Apartheid, provavelmente teria tido uma trajetória diferente. Aquelas circunstâncias produziram esse espírito de luta. Sabe o que acho que está acontecendo agora? Não acho que estejamos necessariamente com falta de líderes. Estamos com falta de clareza sobre quem são os inimigos que devemos abater. Quem nós devemos destruir? Quando era o colonialismo, tínhamos clareza. Quando era o Apartheid, tínhamos certeza do que deveria ser combatido.
Não acho que estejamos necessariamente com falta de líderes. Estamos com falta de clareza sobre quem são os inimigos que devemos abater. Quando era o colonialismo, tínhamos clareza. Quando era o Apartheid, tínhamos certeza do que deveria ser combatido. Agora, temos várias liberdades. E perdemos a noção de que temos inimigos. Os povos têm inimigos. Quais são? Dizer que é a pobreza, muito bem, mas a pobreza é provocada por alguém.
No Brasil, havia a ditadura militar.
Sim. Agora, temos várias liberdades, nossas constituições nos permitem ter liberdade. E perdemos a noção de que temos inimigos. Os povos têm inimigos. Quais são? Dizer que é a pobreza, muito bem, mas a pobreza é provocada por alguém. A pobreza é estruturada. As formas que provocaram a pobreza foram sendo tecidas ao longo de décadas. Mas não temos clareza. O Apartheid era um sistema de opressão racial, o colonialismo era um sistema de opressão dos povos. Agora, qual é o sistema hoje que oprime os povos? Você sabe? Pode dizer?
Parece que tudo está muito difuso.
Exatamente. É isso. O sistema que devemos combater, nesse momento, não está claro. Nós nos queixamos de que 1% das pessoas no globo detém 60% da riqueza no mundo. Sabemos disso. Mas o que está errado nesse sistema que temos de destruir para que a riqueza possa ser melhor distribuída? O que está errado? Não definimos isso. E, porque não definimos, não sabemos o que temos de proteger, mesmo quando temos líderes como Lula, que ampliam as liberdades para as maiorias. O Brasil deu um sentido de dignidade a milhões de pessoas, mesmo isso não sabemos valorizar, proteger. E deixamos que desapareça. A questão é essa: é perguntar o que é, qual o sistema que oprime? Não são pessoas; são sistemas. O sistema colonial impôs o Apartheid. As ditaduras aqui eram muito estruturadas, todo mundo via. Agora, neste momento, ainda que existam ditaduras, elas estão camufladas. E aí não as vemos de forma clara. Temos isso no Brasil e também na África. Esse é o problema: o sistema já não serve aos povos. Não serve à maior parte das pessoas. Esse é o problema, e é por isso que estamos com falta de lideranças.
Incomoda a senhora que, a cada entrevista, os jornalistas lhe perguntem sobre Samora Machel e Nelson Mandela?
Não é que isso me incomode. O que acho é que os jornalistas, de maneira geral, fazem as perguntas erradas em relação a Samora e a Mandela. Não perguntam qual o valor e o legado de Samora Machel e de Nelson Mandela. Querem falar das coisas pessoais. E aí me incomodo. Tenho muito orgulho dos legados de Samora e Mandela.
O que, na sua opinião, eles deixaram como legado?
Não seria correto apresentá-los em termos de comparação. Não gosto de os comparar. Samora Machel deixou como profundo legado para os povos africanos e para todos os povos oprimidos o sentido muito firme, muito claro, de nossa identidade, de nosso valor. O valor dos povos. Ele foi um grande afirmador de seus direitos. No sentido de que não há povos pequenos, não há povos grandes. Povos são povos. E são iguais. Ele afirmou muito a igualdade entre os povos. E é essa igualdade que lhes dá direitos. Essa igualdade não é medida pelo poderio econômico, militar. Foi por isso que contribuiu para a afirmação da África como continente, como conjunto de povos. O fato de ter liderado um movimento de libertação (Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo, no qual Graça também lutou), que foi vitorioso contra o colonialismo português, provou essa contribuição. A nossa vitória também foi militar, mas não é essa a questão, e sim a justeza dos direitos dos povos. Foi isso que fez com que aquele sistema colonial caísse. Eles (as forças portuguesas) tinham força militar superior à nossa, mas nós estávamos melhor organizados, porque defendíamos uma causa justa. A força moral também conta, e muito.
E o legado de Mandela?
Ele também. A vitória do povo sul-africano contra o Apartheid não foi militar, mas uma vitória da justeza da causa. Os sul-africanos têm o direito de ser livres. O direito de dizer que a raça não os distingue como pessoas inferiores. Esse é um dos grandes problemas dos nossos tempos ainda. O problema de olhar para mim... O senhor eu não sei muito bem se é branco. Mas o senhor tem uma pele mais clara do que é minha, e só por isso seria possível concluir que o senhor vale mais do que eu? No caso da África do Sul, impuseram leis nesse sentido, um sistema sofisticado para justificar que as pessoas com pele mais escura tinham menos valor. E, por isso, possuíam menos direitos. Eles (Samora e Mandela), os dois, em circunstâncias ligeiramente diferentes, tinham a mesma causa. Essas são lições que podemos aprender da vida, da experiência de liderança de ambos. Até para o Brasil. Vocês têm cerca de 53% de pessoas com sangue negro. Onde essas pessoas estão? Onde estão na política? Onde estão na educação? Por que tão pouco representadas? É verdade que vieram como escravos. Mas quantos brasileiros vieram de outras partes do mundo? A maioria dos brasileiros veio de fora do país. Os únicos que podem reclamar que essa terra é deles, originalmente, são os índios.
Cortes de 30% para instituições de Ensino Superior é dar uma machadada profunda nas instituições que preparam os jovens. É o futuro da sociedade que está sendo cortado.
No Brasil, há casos de líderes saídos de favelas que foram assassinados. E há tentativas sistemáticas de naturalizar esses crimes, além da invisibilidade, porque são pessoas negras e com origens humildes. Por onde começa a mudança?
Deveria começar pela educação. A educação é o fator social igualitário. A partir do momento em que houver acesso aos mesmos níveis de conhecimento e de como desenvolver habilidades para todas as pessoas em uma sociedade, não haverá nada que possa diferenciar um negro de um branco. Uma das razões de porque essa sociedade subjuga os negros é que não lhes dá as mesmas oportunidades de acesso a ensino. Porque, no momento em que se tiver os mesmos níveis de conhecimento, de desenvolver habilidades, no momento em que houver as mesmas oportunidades de entrar nas instituições e de influenciar decisões, não haverá mais distinção de raça. Agora, no entanto, pode-se distinguir um branco de um negro. Os negros são marginalizados. A história dos dois líderes sobre os quais falamos (Samora e Mandela) é uma história de libertação contra o colonialismo e contra o apartheid, buscando uma sociedade que dê oportunidades a todos, independentemente de raça e classe social. Desculpa dizer, as pessoas não vão gostar, mas vocês têm também o seu Apartheid no Brasil. As pessoas não vão gostar de ouvir isso, mas é verdade. Há diferença de oportunidades, que fica escancarada quando notamos que a maioria da população brasileira não é originária do país. Uns vieram do Japão, outros, da Alemanha, de todos os países Europa. Vocês têm até colônias. Há zonas em que há maior predominância de pessoas de origem japonesa, italiana, alemã. Os brancos não têm mais direito a esse território do que os africanos que estão aqui. Mas optaram por estabelecer um sistema que marginaliza os africanos, os põe na periferia. A gente liga a televisão e não os vê. Eles não são parte dessa sociedade, embora 53% da população seja formada por eles. Talvez esse seja um assunto que ajude a explicar o tema que começamos a discutir no início desta entrevista – a questão da invisibilidade. Há invisibilidade da África aqui, mas também há invisibilidade dos africanos que estão aqui dentro, vivendo no Brasil.
A senhora foi militante da Frente de Libertação de Moçambique, que se assumia como marxista-leninista. Qual é sua convicção política hoje?
Tendo a fugir dos rótulos, de marxismo, socialismo, capitalismo. Não é isso. A questão são as formas através das quais organizamos a sociedade. Esses rótulos eram propostas de formas diferentes de organização social. Que a história não permitiu que vingassem. Não importa. Hoje, temos uma realidade concreta: há marginalização dos países, das mulheres, dos jovens, marginalização uns dos outros. Esse é o problema. Luto contra isso. O rótulo com o qual vai se decidir chamar isso eu não sei qual é. A verdade é que a marginalização é insustentável. Constitui um sistema que já está começando a desmoronar, que não se sustenta.