Não é de hoje que se discute, com certo constrangimento, na Ciência da Comunicação ou nas Relações Internacionais, por que um atentado terrorista em Paris é mais notícia do que uma bomba em Nairóbi ou por que um homem que sai atropelando pedestres em Londres ganha mais repercussão do que meninas sequestradas e convertidas em escravas sexuais pelos extremistas do Boko Haram na Nigéria. A recente passagem do ciclone Idai por Moçambique, Zimbábue e Malaui, em março, não passou de algumas notas de pé de página na maioria dos jornais brasileiros, mesmo tendo deixado rastro de mil mortos e 4 mil feridos. Trata-se de apenas mais um capítulo da história de invisibilidade do continente africano.
Herança do colonialismo ou resultado do ocidentocentrismo que domina a Academia, o vazio de informação sobre essa região do planeta faz com que, frequentemente, os 54 países do continente sejam tratados apenas como “a África”, um bloco monolítico. Isso quando as diferenças culturais não são debatidas nos acarpetados corredores da diplomacia ocidental como caixa de horrores, territórios em permanente guerra civil, de confrontos tribais ou antros de canibalismo, doenças e fome.
O pouco que o mundo hoje conhece sobre a região deve-se a vozes solitárias como a de Graça Machel, 73 anos.
– A África é um continente onde se vai buscar dinheiro, não notícia – diz, ao chegar a Porto Alegre, a ativista de direitos humanos que abre, nesta segunda-feira (13), o ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento 2019.
Ela poderia se chamar apenas Graça pela luz própria de suas palavras, atitudes e história. Mas quis o destino que dois homens tão iluminados quanto ela cruzassem o seu caminho. Primeiro, Samora Machel, o presidente fundador de Moçambique, com quem ela teve dois filhos. Samora morreu em 1986, quando o avião em que viajava sofreu um acidente misterioso na África do Sul. O segundo foi Nelson Mandela, uma paixão tardia mas intensa. Graça conheceu Mandela em 1986, quando o político encarcerado em Robben Island escreveu desde a prisão uma carta para expressar condolências pela morte de Samora. Ela estava sozinha e com a responsabilidade de cuidar de um filho e uma filha de sete e 10 anos, além de cinco enteados. Quando se conheceram pessoalmente, em 1990, pouco após a libertação de Mandela, o entendimento mútuo foi instantâneo. Virou amizade na ocasião do recebimento, por Graça, do diploma honorário de uma universidade sul-africana. Do lado de Mandela, o relacionamento com Winnie não andava bem. Veio o divórcio, e Graça e Mandela oficializaram a união em 1998.
– Estou apaixonado por uma dama muito notável. Ela transformou minha vida – disse o então presidente sul-africano, aos 79 anos, 16 antes de morrer.
Defesa da educação e do empoderamento feminino
Graça não precisaria de Samora ou de Mandela. Tampouco de qualificativos como “a única primeira-dama de dois países”. Em suas andanças pelo mundo defendendo a educação e o empoderamento feminino, ela acaba tendo de responder a jornalistas e plateia curiosos sobre a vida ao lado de duas das maiores personalidades africanas do século 20. Escuta com calma, evita comentar sobre a vida pessoal ou fazer comparações, mas ressalta a herança de luta dos dois homens contra o preconceito:
– Tenho muito orgulho do legado de Samora Machel e de Nelson Mandela.
A África é um continente onde se vai buscar dinheiro, não notícia
GRAÇA MACHEL
Ativista e educadora
Nascida em uma família moçambicana humilde, Graça conheceu o preconceito desde a infância. Quando se mudou para a capital, Maputo, para cursar o Ensino Médio, viu com estranheza o fato de ser a única negra em uma sala com 40 alunos. Em uma universidade de Lisboa em uma época em que raras mulheres (muito menos africanas) chegavam à faculdade, estudou Filologia Germânica. Aos 25 anos, juntou-se à Frente pela Libertação de Moçambique (Frelimo) como guerrilheira. Marchou com Samora até o poder e em direção à liberdade da nação do jugo português.
Ela foi ministra da Educação e da Cultura de Moçambique entre 1976 e 1989. Defensora internacional dos direitos das mulheres e das crianças, foi nomeada em 1990 pela ONU para o Estudo do Impacto dos Conflitos Armados na Infância, trabalho pelo qual recebeu a Medalha Nansen das Nações Unidas, em 1995. Um ano antes, criou a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, organização não governamental com projetos sociais em Moçambique. Em territórios pobres e/ou ensanguentados pela guerra, Graça defende ações pela educação das crianças e pelo empreendedorismo de mulheres.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS, e empresas parceiras Unicred e CMPC. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.
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FRONTEIRAS DO PENSAMENTO 2019
Ciclo de conferências entre 13 de maio e 11 de novembro, sempre às segundas-feiras, às 19h45min.
Salão de Atos da UFRGS (Paulo Gama,110), exceto no dia 21/10 que será no Salão de Atos da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681, prédio 4).
Ingressos: os passaportes estão esgotados é possível se inscrever em lista de espera em bit.ly/listaFronteiras
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17 de junho - Paul Auster
1º de julho – Roger Scruton
19 de agosto – Denis Mukwege
2 de setembro – Janna Levin
23 de setembro – Werner Herzog
21 de outubro – Contardo Calligaris
11 de novembro – Luc Ferry