Um festival que se realiza simultaneamente em Bogotá, Buenos Aires, Madri, Cidade do México e Rio de Janeiro - e que ainda pode ser acompanhado pela internet em outros lugares. Essa é a proposta singular do Festival de Cinema 4+1, cuja terceira edição teve o Rio como sede principal.
Além da exibição de 27 filmes, o evento levou à Cidade Maravilhosa um dos grandes realizadores do cinema atual: o cineasta Werner Herzog.
Promovida pela instituição espanhola Fundación Mapfre, a mostra foi realizada de quarta a domingo na unidade carioca do Centro Cultural Banco do Brasil - mas boa parte dos títulos exibidos pode ainda ser vista online até o próximo dia 30 no site www.4mas1online.com. A seleção inclui títulos recentes de cineastas consagrados como o americano Abel Ferrara (4:44 Last Day on Earth), o chinês Johnnie To (o ídolo de Quentin Tarantino está presente com o ótimo policial Life Without Principle) e a belga Chantal Akerman (La Folie Almayer). Ao lado desses veteranos, marcam presença também jovens diretores que vêm despontando no cinema autoral - caso do uruguaio Rodrigo Plá (com o drama cru A Demora), a francesa Marie Losier (The Ballad of Genesis and Lady Jaye) e o iraniano Mohammad Rasoulof (Goodbye).
- Queríamos mostrar um mapa do que vem sendo feito no cinema contemporâneo, o que necessariamente é nebuloso. Acreditamos em um cinema combativo, na forma e no conteúdo - disse na coletiva de imprensa de abertura do festival o crítico espanhol Carlos Reviriego, um dos curadores do festival.
O convidado de honra deste ano foi o diretor Werner Herzog, homenageado com uma mostra que incluiu desde o clássico Nosferatu, o Vampiro da Noite (1978) até seu primeiro curta, rodado na escola de cinema, chamado Herakles (1972) - passando por documentários impressionantes como Lessons of Darkness (1992) e Into the Abyss (2011).
Ele já percorreu a pé os mil quilômetros que separam Munique de Paris, comeu os próprios sapatos, continuou concedendo uma entrevista normalmente depois de levar um tiro ("Não era uma bala significativa"), ameaçou matar Klaus Kinski no set de filmagem, esperou em vão pela erupção apocalíptica de um vulcão. Conversando com Werner Herzog, é difícil imaginar que esse senhor calmo e atencioso tenha uma vida pessoal e profissional tão aventuresca e incomum.
- Não foi fácil filmar uma produção da magnitude de Fitzcarraldo no meio da selva: o lugar mais próximo onde se poderia conseguir pilhas para uma lanterna ficava a mil quilômetros de distância - recorda Herzog em entrevista à Zero Hora.
Além de falar com a imprensa, o diretor deu na quinta-feira uma aula magna de mais duas horas, encantando a plateia que lotou a sala do CCBB com suas ideias e convicções artísticas inconformistas. Para ZH, Herzog descreveu-se assim:
- Eu acho que provavelmente sou um bom soldado do cinema. O que significa que tenho senso do dever, coragem e prudência no campo de batalha. É preciso ser prudente para trabalhar em Hollywood. Por exemplo: ninguém podia remontar Vício Frenético (2009), porque eu filmei tão pouco que não sobrou material. Eu sigo a minha visão, o que me permite realizar os filmes como eu quero, mesmo trabalhando em um sistema mais industrial.
"Daria tudo para conhecer Garrincha"
Um dos grandes mestres do cinema contemporâneo, - ou melhor, bávaro - Herzog falou com exclusividade com Zero Hora sobre sua carreira de mais de 60 filmes, rodados em diversos lugares do mundo. Três décadas depois, o cineasta de 70 anos relembra a epopeia que foi rodar Fitzcarraldo (1982) em plena selva amazônica:
Zero Hora - Fale sobre The Wild Blue Yonder (2005), longa exibido pela primeira vez no Brasil durante o Festival de Cinema 4+1.
Werner Herzog - É um filme de ficção científica com um alienígena, Brad Dourif, que eu amo como ator, e que tem algumas das cenas mais extraordinárias já filmadas no espaço, em uma missão espacial realizada em 1989. Os astronautas filmaram eles próprios dentro da espaçonave em celuloide de 35mm, com uma qualidade tão grande que eu quis criar uma história de ficção científica em volta deles. A segunda parte tem imagens filmadas sob a camada de gelo do Mar de Ross, na Antártida. É um mundo completamente alienígena: se você nada embaixo do gelo é como se estivesse em um planeta diferente, que eu chamei de Wild Blue Yonder ("Além do Azul Selvagem"), em algum lugar na nebulosa de Andrômeda. É uma fantasia de ficção científica selvagem, com música extraordinária, de Ernst Reijseger. É interessante como eu financio meus filmes: The Wild Blue Yonder foi feito inteiramente com o dinheiro que eu ganhei com meu filme anterior, O Homem Urso, que foi um enorme sucesso de público, o maior nos cinemas dos EUA de um filme de não ficção. Ganhei algum dinheiro com esse documentário e imediatamente investi tudo nesse outro projeto. Provavelmente é por isso que eu nunca vou enriquecer (risos). Minha riqueza são meus filmes.
ZH - Você tem uma relação antiga com o Brasil. Como ela surgiu?
Herzog - Eu amo seu país, a Amazônia, o Nordeste e, claro, o Rio. Vocês têm o privilégio de receber a Copa do Mundo, eu gostaria de vir em 2014 não como cineasta, mas como jogador. A única coisa que me faltou foi ter conhecido o Garrincha: eu daria 10 anos da minha vida só para abraçá-lo. Em certo sentido, tudo começou com o cinema novo, nos anos 1960: antes de botar o pé no Brasil, eu já amava o Brasil. O que eu vi quando assisti aos filmes de Ruy Guerra e Glauber Rocha... Quando você vê um filme do Glauber, você sente e entende o Brasil, de certa forma. Fiquei apaixonado também por aquele espírito comum de rebelião, de criar as próprias regras e encontrar uma identidade cultural. Ninguém tentava imitar Hollywood. Sabe, tudo o que eu tento fazer no meu cinema é bávaro, não muito alemão. Somos como a Escócia ou a Irlanda em relação à Inglaterra. Sempre me senti como um cineasta bávaro. Filmes como Fitzcarraldo: não importa onde foi filmado, no Brasil ou no Peru, é um filme bávaro.
ZH - Falando em Fitzcarraldo, você podia relembrar sua relação com Klaus Kinski, tema do documentário Meu Melhor Inimigo?
Herzog - As pessoas pensam que fizemos muitas coisas juntos, mas só fiz cinco filmes com ele. Aprendi com Kinski sobre movimentos, por exemplo. Mas ele também aprendeu muito comigo, apesar de nunca ter admitido. Nós não nos amávamos ou nos odiávamos, havia algo de extraordinário na nossa relação. Às vezes, ele queria me matar, às vezes eu queria matá-lo. Foi excepcional tabalhar com ele. Mas era um homem complicado, sempre perto da histeria. Durante a filmagem de Fitzcarraldo, os hóspedes do hotel onde ele estava reclamavm dos gritos dele e das manchas de sangue no corredor, porque ele batia na mulher. Não é alguém que você queria ter por perto. É melhor guardar a imagem que você tem dele na tela. O melhor ator com quem já trabalhei foi Bruno S. (protagonista de Kaspar Hauser e Stroszek).
ZH - Voltando a Fitzcarraldo, fazem exatamente 30 anos da estreia do filme. Você entraria novamente hoje nesse projeto louco?
Herzog - Se houvesse um novo projeto, eu faria. Na época, quando terminamos o filme e enviamos os negativos para Munique, eles desapareceram. Fomos encontrá-los semanas depois, em Manila, nas Filipinas. O diretor de fotografia me perguntou antes de reencontrarmos os negativos: "E se o filme se perdeu?". Respondi: "Fique comigo então para começarmos a filmar de novo amanhã". Há um aspecto interessante nesse filme: depois de viver todas as complicações e verdadeiras catástrofes, como aviões caindo, meu acampamento pegar fogo e a iminência de uma guerra entre Peru e Equador, encontrei um caderno com anotações de filmagem minhas, que chamei de Conquest of the Useless ("Conquista do Inútil"). Registrei ali meus sonhos febris no meio da selva, que dificilmente seriam compreendidos pelo público no cinema, e durante 25 anos não pude tocar nesse caderno. Minha mulher me persuadiu a abri-lo. Vi então que minha letra estava ficando microscópica, que só podia ser lida com aquelas lentes de aumento usadas por joalheiros. Nessa prosa estão os meus sonhos febris, que vão sobreviver a todos os meu filmes.
ZH - Que conselho você dá aos novos realizadores?
Herzog - Os estudos sobre cinema são uma doença, infelizmente. A academia é o inimigo, mata toda a sua criatividade. O mais importante é que eu leio. Não sou um frequentador de cinema, estou abaixo da média, vejo uns dois ou três filmes por ano apenas. Uma das coisas que digo para os alunos de cinema no mundo todo é que eles devem ler, ler, ler, ler. Você tem que ler livros que não sejam sobre cinema: poesia, Virgílio, A Conquista da Nova Espanha, Hemingway. Também é importante fazer caminhadas a pé: caminhando do Ushuaia à Colômbia, você aprende mais do que em quatro anos de escola de cinema.