Na solene escuridão verde-azulada do palco do Salão de Atos da UFRGS , a ativista de Direitos Humanos e ex-ministra da Educação em Moçambique Graça Machel se postou à frente do microfone com um elegante tailleur num tom vibrante de vermelho. De certa forma, a própria imagem já representava um pouco o que foi a palestra de Machel na abertura do Fronteiras do Pensamento, nesta segunda-feira: um elemento vibrante diante de um cenário sombrio.
Graça Machel tem uma biografia rica. Lutou na guerrilha de libertação de Moçambique do jugo colonial português. Com seu país independente, foi ministra da Educação e da Cultura entre 1976 e 1989. Defensora internacional dos direitos das mulheres e das crianças, foi nomeada em 1990 pela ONU para o Estudo do Impacto dos Conflitos Armados na Infância, trabalho pelo qual recebeu a Medalha Nansen das Nações Unidas, em 1995. Um ano antes, criou a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, organização não governamental com projetos sociais em Moçambique.
Ela foi também casada com dois chefes de Estado, o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, e o primeiro presidente negro da África do Sul, o mítico Nelson Mandela. Ainda assim, ao começar sua conferência dispondo-se a ter com o publico presente uma "conversa sobre ideias simples", decidiu apresentar-se:
– Sou mulher, sou negra, sou africana. Sou parte da comunidade cultural dos que falam português, como vocês. Também, por viver na África do Sul, sou parte do espaço econômico que vem sendo chamado de BRICS, países que não são nem tão desenvolvidos nem tão miseráveis, que estão entre uma coisa e outra essa lista que inclui Brasil, Índia, etc. Vivo, como vocês aqui, no chamado Hemisfério Sul, e num dos chamados "países em desenvolvimento". Mas peço que esqueçam de tudo isso hoje e pensem em mim aqui como a mais perfeita e completa de minhas identidades. Ao olharem para mim, esqueçam que sou mulher, que tenho todas essas identidades. Vejam a mim apenas como um ser humano.
Graça partiu daí e continuou exemplificando que todos os seres humanos, independentes de cor de pele, procedência, a religião que professam ou que não professam, são iguais, uma das muitas dádivas dadas à humanidade pela natureza, que também concede o corpo que os humanos não controlam nem produzem, mas habitam.
– A verdade que eu quero aqui trazer é que a natureza não se enganou. A natureza determinou esse princípio fundamental, esse elo que aproxima todos os seres humanos: nós somos iguais. Absolutamente iguais.
Apesar do que considerou a infinidade de presentes da natureza ao homem, ela manifestou preocupação pelo atual estado das relações do ser humano com o mundo natural.
– Desde os primórdios de nossa vida, a natureza tem sido generosa conosco. Nos dá a água, o ar sem o qual não viveríamos, os cereais, as frutas, mesmos os animais que usamos para nos alimentar. Mas não estamos tendo uma convivência pacífica com o mundo natural, nós o agredimos, quando deveríamos tenta viver em equilíbrio, numa relação harmoniosa com a natureza.
Eu acredito em movimentos sociais. Porque foi isso que permitiu que o meu país, Moçambique, fosse livre. Foi isso que permitiu que o apartheid caísse. Muitos ajudaram o Apartheid a desmoronar. Muitos de vocês contribuíram para sua queda. Nós tínhamos, então, uma causa comum, e cabe à nossa geração, em especial aos mais novos do que eu, redefinir a nova causa comum: dignificar a vida humana
GRAÇA MACHEL
Ativista e educadora
Outro aspecto quase paradoxal da igualdade humana segundo ela é que em cada um arte uma centelha de vida, uma faísca que é única e que desaparece para sempre se for violada. Essa faísca torna os humanos iguais em sua unicidade, de acordo com ela, e foi a isso que ela definiu como dignidade humana, frisando que era esse o coração de sua fala naquela noite: um chamado a preservar e respeitar a dignidade vilipendiada pelas várias formas de preconceito que negam a igualdade dos seres humanos.
– Instituímos relações de poder para justificar que uns possam ter mais do que outros, que uns possam ter controle sobre os outros. Eu disse no princípio que nós somos iguais. Mas surgiu por parte de alguns a necessidade de se impor sobre os outros – disse ela.
Ao chegar nesse ponto, Graça voltou aos termos de sua apresentação e os revisitou apontando como o mundo contemporâneo usa cada um desses aspectos como elemento de estratificação.
– Por eu ter a pele mais escura, alguns se acham no direito de me considerar inferior. Por ser mulher também. Não há um país no mundo que possa dizer que trata as mulheres como indivíduos plenos e completos. Por vivermos em um país do Hemisfério Sul, os do Norte querem nos impor muitas vezes coisas que não fazem parte de nossa cultura e identidade.
A partir daí, a palestrante apresentou aquilo que considera essencial para o restabelecimento da dignidade humana em tempos de desconfiança e opressão: a ação de movimentos sociais.
– Eu acredito em movimentos sociais. Porque foi isso que permitiu que o meu país, Moçambique, fosse livre. Foi isso que permitiu que o apartheid caísse. Muitos ajudaram o Apartheid a desmoronar. Muitos de vocês contribuíram para sua queda. Nós tínhamos, então, uma causa comum, e cabe à nossa geração, em especial aos mais novos do que eu, redefinir a nova causa comum: dignificar a vida humana.
Graça encerrou sua conferência recebendo uma longa sessão de aplausos da plateia no Salão de Atos lotado. As palmas entusiasmadas se prolongaram, o público começou a se erguer e a conferencista terminou saudada por uma multidão que a aplaudia de pé. No debate que se seguiu à palestra, mediado pelo jornalista Túlio Milman, Graça foi perguntada sobre uma diferença que havia mencionado antes entre aceitar o diferente e tolerar o diferente, e porque apenas a segunda alternativa não é suficiente para estabelecer uma relação pacífica.
– Tolerar uma pessoa deixa subentendido um elemento de tensão para com o outro. Eu o tolero, mas a expressão ainda guarda um juízo de valor sobre a maneira como a outra pessoa é. Aceitar significa que eu reconheço o direito de escolha de ser como essa pessoa quer ser. A forma como quer viver, a sua relação com a religião. E reconhecendo, eu aceito.
Tolerar uma pessoa deixa subentendido um elemento de tensão para com o outro. Eu o tolero, mas a expressão ainda guarda um juízo de valor sobre a maneira como a outra pessoa é. Aceitar significa que eu reconheço o direito de escolha de ser como essa pessoa quer ser. A forma como quer viver, a sua relação com a religião. E reconhecendo, eu aceito
GRAÇA MACHEL
Palestrante do Fronteiras do Pensamento
Tratando-se de uma reconhecida ativista da educação que já ocupou cargo ministerial na área, foi inevitável que as perguntas vindas da plateia se dirigissem para a atual situação da educação no Brasil. Ela se disse perplexa com o que tem acompanhado no país durante sua visita, principalmente os recentes cortes do orçamento das universidades públicas anunciados pelo governo Jair Bolsonaro.
– Eu estou aqui há dois dias, e cheguei no exato dia de uma notícia que pra mim pareceu inacreditável, o corte de 30% do orçamento das universidades federais. Não consigo compreender o fundamento disso. Vou falar francamente, de modo mais aberto do que fiz na conferência. Isso não é só amputar, metaforicamente, os braços e as pernas de toda uma juventude. É a amputação do próprio futuro do país. E é preciso que vocês não deixem que isso pareça normal, que essa forma de governo seja naturalizada – disse.
Ela logo complementou. provocando risos de aprovação e palmas na plateia:
- E falo isso com a tranquilidade de quem acha que vocês podem ir a Moçambique falarem o que quiserem. Às vezes as pessoas se inibem e não querem dar opinião por serem estrangeiras. Como eu disse no início: eu sou parte da comunidade cultural da Língua Portuguesa. Eu não me sinto estrangeira neste país.
Graça também falou, a determinado momento, dos dois maridos, homens que exerceram o poder político em seus respectivos países.
– O que aprendi com os dois foi que a natureza do poder nem sempre está onde se pensa. Eles foram homens dedicados a servir, não a mandar. Sua verdadeira força vinha da autoridade moral, não da imposição forçada de sua vontade.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS, e empresas parceiras Unicred e CMPC. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.
_____________________
FRONTEIRAS DO PENSAMENTO 2019
Ciclo de conferências entre 13 de maio e 11 de novembro, sempre às segundas-feiras, às 19h45min.
Salão de Atos da UFRGS (Paulo Gama,110), exceto no dia 21/10 que será no Salão de Atos da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681, prédio 4).
Ingressos: os passaportes estão esgotados é possível se inscrever em lista de espera em bit.ly/listaFronteiras
________________
17 de junho - Paul Auster
1º de julho – Roger Scruton
19 de agosto – Denis Mukwege
2 de setembro – Janna Levin
23 de setembro – Werner Herzog
21 de outubro – Contardo Calligaris
11 de novembro – Luc Ferry