O médico Antônio Flores, 33 anos, chegou a Beira, Moçambique, em janeiro para ficar dois meses no país, auxiliando o atendimento a pessoas com HIV. Hoje, não tem data para voltar ao Brasil. Com outros profissionais da organização Médicos Sem Fronteiras, o gaúcho de Porto Alegre se viu no epicentro de uma das maiores catástrofes africanas nos últimos 50 anos: a passagem do ciclone Idai, com ventos de 195 quilômetros por hora, que devastou, além de Moçambique, regiões do Zimbábue e de Malauí, entre os dias 13 e 14 de março.
O balanço de mortos chega a 686 pessoas. Faltam água, comida, medicamentos e material para reconstruir casas. Nesta semana, o governo moçambicano confirmou surto de cólera. Os casos de malária aumentam a cada dia.
Direto de Maputo, o médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com residência em infectologia pelo Hospital Conceição, da Capital, contou o drama no país e como a população tenta superar a tragédia.
Onde o senhor estava no momento da passagem da tempestade?
Recebemos os alertas e tomamos a decisão de evacuar no dia anterior. Evacuamos para Shimoio, cidade próxima à fronteira com o Zimbábue, por onde o ciclone também passou, mas com intensidade menor. No momento do ciclone estávamos evacuados em Shimoio.
E como foi a volta a Beira, epicentro da tragédia?
Ficamos em Shimoio cinco noites. Depois que o ciclone passou, parte da equipe tentou retornar a Beira pela estrada, mas ela estava cortada em razão da chuva. Tivemos de retornar para Shimoio. Não havia voos para nenhum outro lugar. Depois de cinco noites, conseguimos voltar para Beira já com a equipe de emergência.
Como estava a cidade quando chegaram?
Estima-se que 90% de Beira tenha sido destruída. Somente há poucos dias a cidade voltou a ter eletricidade em algumas regiões, não é completa. Não tem eletricidade, não tem água em algumas regiões, o sinal de comunicação é intermitente. Muitas casas foram destruídas e muitas pessoas ainda estão desabrigadas. Isso tem efeito nos serviços de saúde. Muitos centros de saúde foram destruídos, as pessoas não conseguem acessar os serviços de saúde. A comida nos mercados está escassa. Os preços aumentaram muito. Há muitos problemas. É uma situação caótica e dramática.
Como é feito o trabalho de ajuda às pessoas?
O trabalho é bastante intenso. A primeira fase consistiu em avaliar as necessidades, na semana passada. O número de pessoas aumentou na equipe. Tínhamos 13 pessoas, agora somos mais de 50 do quadro internacional. A equipe nacional também aumentou bastante. É um trabalho de segunda a segunda, que começa às 6h30min da manhã e vai parar à meia-noite ou quando puder parar.
Moçambique é um país no qual a população fala em português. Como é acompanhar esse drama ouvindo relatos no seu idioma?
As pessoas conversam, contam suas histórias. Quase todos os moçambicanos foram afetados de alguma forma. Alguns com grandes perdas. No entanto, o povo moçambicano é bastante resiliente. A equipe (dos Médicos Sem Fronteiras) voltou para o trabalho, precisa reconstruir sua casa, suas vidas. As pessoas estão tentando voltar a ter uma vida normal para poder reconstruir as coisas que perderam.
Em que momento o lado psicológico pesa mais?
É uma situação atípica, porque tínhamos um projeto estável, em um lugar estável. Voltarmos para um lugar que foi arrasado e ter tantos colegas afetados isso pesa. Isso gera uma carga emocional. Mas, como há uma resposta muito grande e muito intensa (a ser dada), nesse momento a gente precisa seguir firme e forte para ajudar as pessoas. Atender até mesmo os colegas (médicos) moçambicanos que estão passando por dificuldades.
Que estrutura o senhor tem para trabalhar?
Temos trabalhado com clínicas móveis, tentando acessar comunidades que ficaram isoladas dos serviços de saúde. Uns dos centros onde trabalhávamos está completamente destruído. Antes de reabrirmos o centro para trabalhar com o Ministério da Saúde, estamos apoiando na reforma e reabilitação. A estrutura de trabalho ficou bastante limitada. Muitos centros de saúde só reabriram esta semana. Ficaram fechados, perderam telhado, ficaram alagados. Muitos serviços pararam por mais de uma semana.
Há risco de cólera e malária?
Existe um surto de cólera declarado pelo governo. Há muitos casos de diarreia aguda. Isso é consequência do ciclone, que afeta a estrutura de saneamento, deixa as pessoas sem acesso a água potável. Existe um surto em andamento que, infelizmente, é consequência de uma catástrofe. A mesma coisa a malária. Chuvas intensas vão trazer malária. Não se pode falar de surto ainda, mas os casos estão aumentando. Então, estamos em alerta.
A ajuda está chegando?
Na última semana, a resposta começou a se intensificar bastante. A mídia internacional tem falado consideravelmente sobre o assunto. Há muitos outros governos, organizações, ajudando na resposta. Nesse momento, as prioridades são alimentação e reconstrução de casas. Perto de Beira, há uma cidade que foi quase totalmente submersa, algumas pessoas ainda estão sendo resgatadas de lá.
Onde o senhor está nesse momento?
Acabei de pousar em Maputo (capital), vim para algumas reuniões. Volto amanhã (para Beira). Mas ficamos em Beira, a equipe toda fica lá, o tempo todo. É como a gente pode ter mais acesso à comunidade, mais rapidamente.
O senhor já havia passado por outras missões desse tipo?
Estive em Malauí, já havia trabalhado em Moçambique, estive em Roraima, abrindo a resposta de Médicos Sem Fronteiras à migração (de venezuelanos). Em desastre desse tamanho é uma coisa inédita. Fala-se que esse talvez tenha sido o maior desastre natural do continente africano nos últimos 50 anos. Há bastante danos na cidade, na estrrutura, é impressionante e chocante.
Os mortos são um fator de preocupação em razão das epidemias?
O governo tem ajudado a população a dar essa resposta em relação aos mortos. Na medida em que (os corpos) são achados, são recolhidos para locais especiais. Essa é uma das preocupações. Em algumas comunidades, as pessoas estavam enterrando os mortos por conta própria, porque não tinham acessos a outros serviços. Essa resposta também é necessária nesse momento.
Por que não houve uma mobilização mundial semelhante a outras tragédias?
Percebo isso pela minha experiência pessoal. Fui começar a receber mensagens de pessoas preocupadas mais de uma semana depois. É fato que a resposta a essa tragédia é bastante lenta. Infelizmente, o continente africano é invisível na mídia. Essa é uma grande catástrofe. E a resposta e a cobertura têm sido bastante lenta.
O senhor fica aí até quando?
Preciso decidir. Ia ficar aqui por um tempo curto, mas, como precisamos redesenhar (a missão) e dar apoio ao Ministério da Saúde na resposta ao HIV, não tenho prazo para retornar. Havia vindo para ficar dois meses, agora não sei.