Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, o professor Guilherme Casarões compara a aproximação alinhavada entre Brasil e EUA, no encontro entre os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, com a "relação carnal" estabelecida pelo governo Carlos Menem e Washington, nos anos 1990. Nesta entrevista à coluna, ele pondera os ganhos e perdas do alinhamento automático com a Casa Branca e compara com outros períodos históricos, como o do mandato de Castelo Branco.
Guilherme é vice-coordenador da Graduação em Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP) e Professor da FGV nas áreas de Administração Pública, Ciência Política e Relações Internacionais.
**
A aproximação com os Estados Unidos, sacramentada no encontro entre Bolsonaro e Trump, pode ser comparada a outro período histórico? Talvez no governo Castelo Branco?
Em certo sentido, é até mais. Bolsonaro foi eleito prometendo ruptura total em política externa. Durante a campanha, quando ele promete se aproximar de Trump, mudar a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, não só desmonta a política externa do PT, mas toda a trajetória da política externa brasileira, que remonta ao barão do Rio Branco. O Brasil sempre teve claro, desde o começo da República, o princípio da não intervenção e o respeito pleno à soberania das nações. Só com o fato de Bolsonaro considerar, em acordo com o discurso mais inflamado de Trump, que todas as opções sobre a Venezuela estão à mesa, já mostra certa inflexão daquilo que a gente costuma entender como tradição da política externa brasileira. A Venezuela é um exemplo. Há sinais, ainda que não estruturados, de que o Brasil vai mudar sua posição em relação ao multilateralismo, aos parâmetros básicos do direito internacional, ao pragmatismo econômico, características da política externa há muito tempo: a ruptura total com os parâmetros históricos. Isso nos coloca em outra situação. Não coloca o Brasil hoje em termos diplomáticos dentro de uma normalidade, em que a gente tenha o conjunto de posturas que o Brasil já teve na sua história. Estamos falando de algo novo: para o bem e para o mal. Há quem critique que o Itamaraty foi sempre muito fechado, interagiu muito pouco com a sociedade, essa é uma crítica que Ernesto Araújo faz em várias falas públicas. Diz que a política externa brasileira perdeu alma. Ao mesmo tempo, ele está propondo fundamentalmente o contrário a questões nas quais a gente, como nação, acredita: não devemos invadir nem contribuir para invasão de um país, como no caso da Venezuela. Ou não devemos tomar posição fechada em relação a assuntos que estão muito distantes, como Jerusalém. A gente está diante de um momento de ruptura paradigmática, não só ideológica, ideologia do PT, mas mais ampla, com relação à tradição diplomática do Brasil. É possível fazer um paralelo com americanismo de Castelo Branco. Foram três presidentes ao longo do pós-guerra que deram uma guinada americana: Eurico Gaspar Dutra, no imediato final da II Guerra, Castelo Branco, e Fernando Collor de Mello.
Como foi a aproximação do governo Dutra com os EUA?
Acho que o Ocidente entende o Brasil como um pedaço pobre e obscuro, mas, no frigir dos ovos, é muito mais a construção de sua própria identidade.
Tem um historiador, Gerson Moura, que chama a fase da política externa de "alinhamento sem recompensa": uma coisa meio irrefletida, meio "vamos manter o alinhamento com os EUA", mas esperando um conjunto de coisas em troca que os americanos não se dispuseram a dar para o Brasil. Sobretudo, investimentos na área econômica. Mesmo figuras insuspeitas como Pedro Malan, que tem uma obra grande sobre história da diplomacia econômica, dizem que os anos 1940, do ponto de vista econômico, foram muito ruins porque a gente cedeu muito aos EUA: abrimos nosso mercado, mexemos em controle cambial, e isso fez com que a gente arrebentasse nossas reservas estrangeiras e que não conseguíssemos recuperar a economia no pós-guerra. Era um momento de muita indefinição, porque o mundo havia sentido um trauma gigantesco. Os EUA despontavam como grande potência do mundo, era normal que o Brasil se posicionasse de maneira mais alinhada. Até porque não havia alternativa. A URSS não era alternativa. O momento hoje é diferente. Os EUA já não são a única potência do mundo. O Brasil já acumulou repertório histórico de parcerias com outros países. A China é um deles, mas não a única. No fim das contas, estamos fazendo o mesmo tipo de alinhamento em uma conjuntura global diferente, em que o nosso principal parceiro comercial nem sequer são os EUA. Ao mesmo tempo, estamos rompendo paradigmas históricos que se consolidaram no século passado. Não estou dizendo que seja necessariamente ruim, mas representa uma ruptura conceitual que torna o Brasil irreconhecível para interlocutores estrangeiros.
E as intervenções dos EUA no governo de Juscelino Kubitschek?
Juscelino inclusive brigou com os EUA. Entendia a importância dos EUA, mas tinha uma postura muito sóbria. Mesmo que entendesse a importância dos investimentos estrangeiros por causa do plano de metas, buscou diversificar, ao máximo, dentre os países ricos, aqueles com os quais o Brasil poderia manter relações. Juscelino foi responsável por trazer os primeiros aportes de investimentos japoneses para o Brasil, quando criou a Usiminas, em 1958. Foi responsável por trazer um pedaço importante da indústria automobilística europeia para o Brasil, Fiat e Volkswagen. É como se o Juscelino estivesse inserido em um diálogo Norte-Sul (e não Sul-Sul), mas entre os países do Norte, não via os EUA como única opção. Tanto é que depois de uma bateção de cabeça com os americanos, durante o governo Dwight Eisenhower, por causa de empréstimos sobretudo para o plano de metas, JK fica bravo, tem um discurso famoso, em 1959, em que diz que o Brasil não aceita mais ficar na cozinha da política mundial. Quer entrar na sala de estar e jogar o jogo com os grandes. Juscelino entendia os riscos de uma relação muito carnal com os EUA. O que Bolsonaro está fazendo é menos comparável a casos brasileiros, talvez Castelo Branco seja mais próximo, ainda que acredite que ele nunca tenha abandonado princípios terceiro-mundistas. Ele sempre defendia a ideia do desenvolvimento como a linha-chave do Brasil. Isso contrasta muito com essa postura de abrir mão do status diferenciado na OMC (Organização Mundial do Comércio). Se quisermos uma comparação, a Argentina de Carlos Menem é a comparação mais próxima. Nessa época, observou-se uma guinada de 180 graus, dentro do que o grande teórico da política externa argentina, Carlos Escodé, chamou de "realismo periférico".
Ao se alinhar com os EUA em prol de uma visão de defesa do Ocidente, o Brasil esquece que, do ponto de vista de muitos especialistas americanos e europeus, não fazemos parte do Ocidente?
Esse debate é antigo. Tem um livro muito interessante do filósofo americano Richard Morse, que escreveu um livro chamado o Espelho do Próspero, no qual argumenta que existe uma tradição ibérica e outra puritana que construíram nas Américas duas coisas diferentes. Você tem a tradição puritana que veio para os EUA e consolidou um Ocidente, e a tradição ibérica, que se afastou do Ocidente, gerando toda herança latina que a gente tem. O Brasil não fazia parte do Ocidente. Havia um filósofo brasileiro, diplomata de carreira, chamado José Guilherme Merquior, que escreveu um texto em resposta, dizendo que o Brasil era ocidental. É um debate que, intelectualmente, remonta há 30 anos. Mas uma coisa é o debate filosófico, outra é o uso político dessas palavras. Acho que o Ocidente entende o Brasil como um pedaço pobre e obscuro, mas, no frigir dos ovos, é muito mais a construção de sua própria identidade. O que nos coloca no Ocidente é o nosso conjunto de ações e de atos. Uma das formas de nos aproximarmos do Ocidente é a gente se atrelar aos EUA. E veja que a própria noção de Ocidente está mudando: uma noção de Ocidente progressista, de direitos individuais e humanos, que ganhou força com a globalização, foi uma escolha que o Brasil fez à época do Fernando Henrique. O que estamos vendo hoje é a construção de outra noção de Ocidente: de Deus, família e nação. O Ocidente de Olavo de Carvalho, que Ernesto Araújo escreveu naquele texto Trump e Ocidente, segundo o qual o presidente americano seria o único capaz de salvar o Ocidente da conspiração globalista.
Nesse sentido, a viagem aos EUA e o encontro com o Trump é mais um recado ao mundo, simbólica, do que focada em interesses econômicos e estratégicos?
A viagem para os EUA acaba tendo uma função menos pragmática, menos comercial, menos estratégica do ponto de vista dos militares, e mais identitária. Ao se aproximar dos EUA nesse momento, ao contrário de outras épocas, o Brasil está dizendo ao mundo duas coisas: somos ocidentais e estamos comprometidos com a salvação do Ocidente nos nossos termos. A segunda: nada que não esteja incluído dentro dessa ideia de Ocidente é interessante estrategicamente para nós. O que automaticamente joga China, os árabes, os Brics, integração regional na lata do lixo.
Mas a relação com os EUA sempre foi de aproximações e distanciamentos.
Você tem movimentos bem identificados de compressão e descompressão dessa relação. Uma das grandes dificuldades de Getúlio Vargas, quando ele foi eleito presidente, em 1950, foi que o Congresso estava rachado em um grupo udenista, pró-americano, e o PTB, o partido dele, que era antiamericanista. As cisões existem dentro da própria sociedade. A identidade brasileira é uma síntese desse espelho, o desejo histórico que se coloca de que o Brasil quer ser os EUA da América do Sul. Agora, a gente não pode construir uma identidade exclusivamente pautada nos EUA e mimetizá-los em tudo o que eles fazem. Até porque o Brasil não são os EUA. O mínimo que se espera é uma adaptação dessa conduta para a nossa realidade. Se os EUA dizem que vão sair do Pacto de Paris, a gente vai lá e sai. Se os EUA dizem que vão sair do Pacto de Refugiados, a gente vai lá e sai. Se eles falam que vão invadir a Venezuela, a gente vai lá e invade. Isso se torna um problema concreto porque a gente não está mais definindo nossa identidade por conta própria, está simplesmente atrelando nossa identidade a um terceiro, cuja realidade e necessidades são diferentes. Juracy Magalhães, um dos chanceleres de Castelo Branco, disse certa vez, beijando a mão do adido cultural americano: "O que é bom para os EUA, é bom para o Brasil". Não é assim. O que é bom para o Brasil é bom para o Brasil. Se a gente quiser ter uma relação boa com os EUA, a gente não pode esquecer de nossas particularidades individuais.