Não é difícil reconhecer a polarização política da sociedade brasileira: muito antes das eleições, com as intensas polêmicas no mundo das artes, ou no debate público, que sempre serviu de esteio para o amplo esclarecimento de temas importantes, cada vez mais estreito e radicalizado.
O desafio é compreender esse fenômeno, buscar o diálogo e mirar nos consensos possíveis, tornando as sociedades mais democráticas, mais justas e mais plurais.
O Fronteiras do Pensamento 2018 aceitou esse desafio, e o debate em torno do tema “O mundo em desacordo: democracia e guerras culturais”, ao longo das oito conferências do ano, mostrou que é possível enfrentar essa questão com prazer, com profundidade e com muita diversidade nos pontos de vista.
Vítima preferencial de tempos de intolerância, a arte ocupou justo papel de destaque em nossa temporada.
E, de fato, do artista vigiado por regimes autoritários — comuns em todos os espectros ideológicos ao longo do século 20 — ao criador que se submete ao novo tipo de “censura do bem”, motivada pelas minorias que buscam controlar modos de representação que consideram ofensivos, é inegável que os desafios para o mundo da arte em nosso tempo são muitos. Daí a importância de ouvir os artistas em primeira mão. Como foi o caso com o chinês Ai Weiwei, um dos mais importantes nomes das artes visuais no mundo contemporâneo, que ofereceu ao público do Fronteiras um dos grandes momentos do ano em seu diálogo com o curador Marcello Dantas, analisando questões como os sentidos da liberdade, a censura e as sutis formas de violência que nos cercam. Ou como na conversa entre a atriz e escritora Fernanda Torres e o artista plástico Vik Muniz, na qual arte e democracia no Brasil se confundiam com as trajetórias desses destacados criadores.
Diálogo — eis a palavra repetida insistentemente. Nada melhor do que o entre artistas, e destes com o público, para virar a página das censuras e boicotes que marcaram nossos últimos anos. E a página escrita pelos artistas da palavra no Fronteiras 2018 foi assim, aberta e rica, como deve ser a grande literatura, ingrediente indispensável de nossa sensibilidade pluralista: seja na voz poética de José Eduardo Agualusa, e sua delicada crença na leitura como utopia, seja no rico debate entre o jovem escritor chileno Alejandro Zambra e o premiado escritor espanhol Javier Cércas, que souberam conduzir o público pelos mecanismos internos da literatura com a mesma paixão com que sentem e pensam seus países e as respectivas histórias políticas que representam, percorremos identidades múltiplas, distintas da nossa, mas que se fizeram nossa naquela noite — como nos momentos de leitura de suas obras.
Leïla Slimani que o diga: a escritora franco-marroquina, premiada com o prestigiado Goncourt, falou com muita beleza e não sem alguma dor sobre este tema incontornável para compreender os nossos desacordos, nossas “guerras culturais”: a identidade. Recusando-se a ser refém de qualquer imagem imposta por narrativas autoritárias – religiosas ou políticas, ocidentais ou islâmicas —, Slimani falou ao público com a mesma força e a mesma linguagem cristalina de seu extraordinário romance, Canção de Ninar, e brilhou justamente em uma programação de estrelas.
As identidades — étnicas, de gênero, as sexualidades, religiosas — estão no coração do problema do grande desacordo nas modernas democracias liberais. Destaque internacional no campo minado das discussões identitárias, o feminismo em suas novas roupagens venceu importantes batalhas, como as que levaram à onda de denúncias contra figuras como o chefão de Hollywood, Harvey Weinstein. Contudo, mesmo no interior do movimento feminista, o assim chamado #MeToo não foi unanimidade — e foi para lançar uma luz divergente, complexa e distanciada que a crítica de arte, jornalista e escritora francesa Catherine Millet trouxe sua polêmica, a um só tempo geracional — pertence a outra época histórica do feminismo — e cultural — a França, seguramente, ainda não está americanizada.
Identidades. Se escritores e artistas puderam abordar o tema de um modo criativo, pessoal, engajando-se como feministas, como críticas ao feminismo, como portadores de uma utopia, ou como fugidios cidadãos de regimes autoritários, não faltou ao Fronteiras a palavra da ciência. Siddartha Mukherjee, o consagrado pesquisador do câncer e autor do primoroso O Gene — Uma História Íntima, mergulhou em nossa condição biológica mais elementar para discutir quem somos e contemplar como enfrentamos o “imperador de todos os males” — o câncer.
Se concluirmos, ao final deste balanço, que é possível reaprender a falar como cidadãos para cidadãos, ultrapassando nossas identidades mais rígidas, terá sido porque levamos a sério a mensagem de Mark Lilla, um dos mais prestigiados intelectuais americanos da atualidade, que encerrou com Luiz Felipe Pondé essa incrível temporada. Seu otimismo com a democracia, temperado pelas críticas céticas e perspicazes de Pondé, pautou, de certa forma, todo o trabalho do Fronteiras 2018, e encerrou o ano com esta mensagem fundamental: nossas muitas identidades precisam convergir para alguma coletividade. Um senso de pertencimento — cidadania, dirá Lilla.
A tarefa é nossa.