Autor de uma das colunas mais discutidas da imprensa brasileira, publicada no jornal Folha de S.Paulo desde 2008, o filósofo Luiz Felipe Pondé, que vem a Porto Alegre para a conferência de encerramento do Fronteiras do Pensamento, não evita polêmicas. Na entrevista a seguir, afirma que a maior parte dos eleitores não se preocupa com política – e os que se preocupam agem como hooligans. O filósofo também critica a "hipertrofia judiciária" do Brasil.
O tema de sua conferência será a ciência política cética. Que reflexões serão abordadas?
Vou falar que existem dois tipos de ciência política hoje. Um primeiro tipo é aquele ao qual estamos acostumados, é pensar a política para ampliar as virtudes democráticas, garantir pesos e contrapesos, a qualidade da democracia. Mas tem crescido outro tipo de ciência política, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, que é uma ciência política cética no sentido de que ela não visa a trabalhar a qualidade da democracia, mas sim compreender prioritariamente o comportamento dos eleitores. Nesse sentido, ela é cética e empírica, também poderia ser chamada de ciência política empírica. Trabalha com pesquisa quantitativa e qualitativa. Essa ciência política faz a crítica de certas lendas que existem na democracia, como a de que pessoas com mais formação seguramente votariam melhor e que isso seria garantidor de não haver viés ideológico (em suas escolhas). A maior parte dos eleitores não tem tempo de se preocupar com a política, e aqueles que se preocupam o fazem sempre em um estilo meio hooligan, violento, como vimos no Brasil e ainda estamos vendo.
Essa ciência política cética responderia melhor aos desafios do contexto global que vivemos hoje?
Sem nenhuma dúvida. Responde inclusive no sentido de nos ajudar a garantir as possíveis virtudes da democracia. Ela não é contra a democracia, apesar de ter alguns cientistas políticos americanos que entendem que a gente vai ser forçado a fazer experimentos, que já estão em curso, de certa relativização da soberania popular, que podemos baixar para regimes híbridos, tipo a Comunidade Europeia, em que você tem eleições populares diretas para primeiro mandatário, para o parlamento nos países, mas em que a economia é completamente à parte da decisão da população. Ou regimes em que o Supremo Tribunal começa a legislar porque o Legislativo é muito lento e muito cheio de lobbies. Então você tem o que os americanos chamam de “juridical reviews”. É o que vemos no Brasil também, uma tendência a um neoconstitucionalismo, uma tendência a uma hipertrofia judiciária. O Brasil nunca esteve tão em dia com o estilo político de muitos países do mundo hoje.
Que autores da ciência política cética o senhor destaca?
Larry M. Bartels, Christopher H. Achen, Jason Brennan, Yascha Mounk.
Mark Lilla dividirá o palco com o senhor. Quais suas impressões sobre o pensamento desse autor?
É um intelectual identificado com o Partido Democrata, portanto um liberal, como eles falam nos Estados Unidos, uma espécie de esquerda americana dentro do espectro político. Lilla identifica a política identitária como um beco sem saída, apesar de estar falando especificamente do Partido Democrata no último trabalho dele, que saiu no Brasil recentemente (O Progressista de Ontem e o do Amanhã). Lilla apanhou muito por causa disso, mas pega num nervo muito bom que é certa vitimização como ativo político. Essa vitimização das identidades leva ao esfacelamento, à fragmentação completa e à perda de uma noção de denominador comum no povo americano. Também sobre o tema vitimário como ativo político, tem um sociólogo húngaro radicado na Inglaterra chamado Frank Furedi, que lançou um livro muito interessante falando do culto da identidade frágil entre os jovens. Dialoga bem com Lilla. Nunca vi um falar do outro, mas quem conhece os dois autores vê que estão conversando, em regimes diferentes. Podemos dizer que Lilla está praticando uma ciência política cética em relação ao Partido Democrata americano.
O senhor pode ser considerado um intelectual público, no sentido de que é um pensador que se dirige ao público em geral, e não apenas ao mundo acadêmico. Como vê esse papel?
Não tenho nenhum problema com esse nome, intelectual público. Inclusive quando eu estava no primeiro ano de Filosofia eu já tinha como objetivo escrever na Folha (de S. Paulo). Queria de alguma forma estar no debate público, na ágora, como falamos na Faculdade de Filosofia. E isso, no mundo contemporâneo, é a mídia. Então eu tinha isso como objetivo, tanto trabalhar academicamente quanto trabalhar na mídia. Não tenho nenhum problema com isso, apesar de a Academia normalmente ter muita inveja de quem trabalha na mídia. Ele dizem que é outra coisa, mas na verdade é inveja. Acho que o intelectual público tem um papel muito importante. Estamos vendo isso acontecer no Brasil em vários níveis. Tem intelectuais públicos que são mais presentes em mídias sociais ou menos, diferentes correntes, diferentes abordagens. O intelectual público tem um papel que é de alguma forma tentar dar um norte, qualificar um pouco a discussão, fazer um trabalho que os jornalistas chamam de “gatekeeping”, ou seja, fazer um certo filtro, certa “edição” dos debates no sentido de tentar organizar um pouco ou dar algumas diretrizes e ajudar as pessoas a entenderem o mundo em que vivem.
Muitas pessoas de direita hoje parecem transitar, às vezes com certa confusão, entre o liberalismo e o conservadorismo. Parece que o liberalismo está dando lugar ao conservadorismo ou talvez a uma forma híbrida, o chamado "conservador nos costumes e liberal na economia". Como o senhor percebe esse momento?
As pessoas nunca vão saber plenamente o que é um e outro porque são conceitos com bastante instabilidade semântica. Quer ver um exemplo? Quem sabe exatamente o que é democracia? Normalmente as pessoas entendem que democracia é o sistema em que as pessoas votam. Mas a maior democracia do mundo tem eleição para presidente que é indireta. Você tem regimes de pesos e contrapesos que são às vezes mais importantes ou tão importantes quanto o voto. Acho que a instabilidade da terminologia na filosofia política e na ciência política advém do próprio uso concreto e histórico que as pessoas e instituições fazem dessas palavras. Conservador é uma palavra que surge na França, por volta de 1810, para se referir a quem era contra a Revolução Francesa, a favor do Antigo Regime. Quando esse termo ganha autonomia na Inglaterra, está intimamente ligado a certo ceticismo com relação ao racionalismo político. Esse ceticismo implica que, como você não tem muita certeza da razão política, é melhor levar em conta certos hábitos. Isso está distante, por exemplo, de simplesmente alguém dizer “Sou contra o aborto”. Estou falando filosoficamente. É difícil aquilatar o termo quando você está no ambiente filosófico de ciência política de fato e quando você desce para a Terra, onde os termos têm sentido de marketing, retórico, demagógico e militante. Tanto que liberal é um termo que surge na Europa no final do século 18 e começo do século 19 para significar a pessoa que seja liberal no sentido econômico, seja no sentido de que era a favor de ideias novas. Portanto, uma postura meio progressista, para falar no senso comum.
E no caso do Brasil hoje?
Existe hoje no Brasil especificamente um conservadorismo de costumes, e cada sistema político tem suas peculiaridades. "White supremacy" (supremacismo branco) não pega no conservadorismo brasileiro. Pega nos Estados Unidos. Problema de racismo explícito está dentro da história dos conservadores católicos ou não católicos ou nazifascistas da Europa. Aqui não é exatamente isso, apesar de três ou quatro malucos acharem que podem ser skinheads no ABC em São Paulo, sendo que são nordestinos de origem. Coisa meio ridícula, certa importação. O que existe hoje no caso do Bolsonaro, especificamente, é conservadorismo de costume, resultado de certa militância de setores bastante liberais nos costumes, associada, por exemplo, ao comportamento da mulher, gay, transexual. Bolsonaro também navegou numa onda de extrema irritação com o PT. E o modelo econômico do PT acabou levando Bolsonaro a se aproximar de setores liberais na economia. Se formos falar em termos recentes da história da América Latina, o que ele quer ser está mais perto de certo conservadorismo chileno do que propriamente brasileiro. Porque o conservadorismo brasileiro, associado ao histórico militar da ditadura, é estatista, antiliberal e mais próximo da economia do PT. Enquanto o chileno foi conservador em costumes, inclusive durante o regime autoritário, mas já no regime autoritário aberto aos boys de Chicago (economistas formados na Universidade de Chicago).
Em entrevista à Folha, um liberal como Armínio Fraga defendeu que o governo deve abordar temas como Estado de Direito, respeito às minorias, fim da desigualdade e combate à violência. É uma agenda que simpatizantes de Bolsonaro e o próprio talvez considerassem “comunista”. Isso ilustra a confusão de conceitos de hoje?
Eu li essa entrevista a que você se refere. É porque o Armínio Fraga é um liberal sofisticado. Tem ali uma reflexão de que a economia é um sistema que deve produzir riqueza não só material e não só para alguns. Se você produzir riqueza com excessiva desigualdade social, inclusive em um país como o Brasil, você acaba destruindo a própria riqueza. Ao mesmo tempo, quando ele fala de pautas de minorias e direitos humanos, está assimilando a mais clássica tradição liberal europeia, segundo a qual você é a favor da economia de mercado, mas ao mesmo tempo entende que não pode ter uma economia de mercado sem levar em conta questões da sociedade. Tornar uma sociedade mais rica não é torná-la uma sociedade com mais carros blindados. É torná-la uma sociedade em que as pessoas possam comprar coisas e andar na rua sem tanto medo.