Uma fissura no consenso, um alerta contra os exageros, uma crítica ao puritanismo e ao "denuncismo". Para a escritora Catherine Millet, que participou da redação do chamado "Manifesto das Mulheres Francesas", esses eram os objetivos principais do documento – que acabou atraindo quase tanta atenção (e ódio) quanto o próprio movimento que criticava. O manifesto foi publicado no jornal francês Le Monde em janeiro, apenas três dias depois da histórica cerimônia do Globo de Ouro em que artistas se vestiram de preto em apoio ao movimento Me Too, que combate o assédio e o abuso sexual. Curadora e crítica de arte – e agora inimiga pública número 1 de parte do movimento feminista –, Millet, aos 70 anos, está acostumada a polêmicas. Em 2001, tornou-se mundialmente conhecida ao lançar o livro A Vida Sexual de Catherine M., em que compartilhava histórias íntimas. Ela é a conferencista do Fronteiras do Pensamento no próximo dia 2.
Qual será o tema de sua conferência em Porto Alegre?
Os organizadores do Fronteiras do Pensamento me propuseram como ponto de partida uma reflexão sobre o modo como as atuais guerras culturais podem afetar a democracia. Evidentemente, há também um interesse grande pelas questões envolvendo o feminismo, uma vez que eu e algumas amigas minhas marcamos posição, aqui na França, em relação a esse debate. Então, minha participação deve abordar esse assunto.
Como nasceu a mobilização que resultou no chamado "Manifesto das Mulheres Francesas"?
A ideia inicial não foi minha. Na verdade, a ideia partiu de uma amiga, a psicanalista e escritora Sarah Chiche. Ela ouviu, de sua editora, que meu livro A Vida Sexual de Catherine M., lançado na França em 2001, jamais poderia ser publicado nos dias de hoje. Isso a chocou muito, e Sarah me ligou para dizer que era preciso reagir a esse puritanismo que invadiu a sociedade. E foi assim que surgiu a ideia de um manifesto. Algumas amigas com as quais comentamos o assunto, nos dias seguintes, pensavam como nós e se dispuseram a participar da redação do manifesto. Começamos então a fazer circular uma versão inicial do texto, e cada uma acrescentou ou corrigiu o que achava necessário.
Mulheres, todas elas, ligadas de alguma forma ao ambiente intelectual.
Exatamente. As redatoras do manifesto são todas elas mulheres que escrevem, principalmente romancistas. Todas nós repassamos o texto final para mulheres próximas – muitas do meio artístico, no meu caso. E houve, também, algumas mulheres que não são intelectuais ou artistas, mas que se ofereceram para assinar conosco o manifesto.
No restante do mundo, o nome da atriz Catherine Deneuve acabou recebendo um destaque talvez demasiado...
No caso de Catherine Deneuve especificamente, fui eu que entrei em contato com sua secretária. Enviei o texto, e muito rapidamente ela me respondeu, dizendo que Catherine gostaria de assinar o manifesto.
No início dos anos 2000, falávamos de um outro tipo de feminismo, que não fazia guerra aos homens. Havia mulheres, mais jovens do que eu e muito liberadas sexualmente, que defendiam um feminismo que não transformava os homens em inimigos.
CATHERINE MILLET
Cinco meses depois do lançamento do manifesto, qual a sua avaliação do episódio? A senhora mudaria alguma coisa no texto?
Não mudaria nada. Penso que esse texto provocou reflexão, o que era desde o início o nosso objetivo. A maioria das críticas contra o manifesto se deteve no uso de alguns termos, mas seus efeitos foram extremamente positivos. Pode-se perceber isso analisando a reação da mídia nos dias que se seguiram. Percebe-se que houve uma maior prudência ao falar de algumas acusações, destacando que muitas delas apresentavam nuanças que não deveriam ser desconsideradas. Acredito que nós criamos uma rachadura no muro, pelo menos. Durante algumas semanas, tivemos a impressão de que esse discurso que na França chamamos de Balance Ton Porc (versão francesa do Me Too, algo como "enquadre seu porco chauvinista"), uma expressão horrível, havia se tornado hegemônico, não havia voz contrária. A reação hostil ao nosso manifesto comprova isso.
Vocês foram surpreendidas pela reação global imediata ao manifesto?
Completamente. Nós publicamos a carta no jornal Le Monde, imaginando que isso suscitaria alguma reação na França, mas jamais imaginamos que jornais do mundo inteiro iriam nos procurar. Foi uma loucura. No dia seguinte, havia pedidos de entrevista de jornais espanhóis, ingleses, brasileiros, chilenos, americanos. Foi inacreditável.
As signatárias do manifesto afirmam não se reconhecer no feminismo que, para além da denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade. A que a senhora atribuiria essa postura de parte das feministas?
Esse tipo de feminismo já existia nos anos 1960 e 1970. Havia, já naquela época, um feminismo que era bastante agressivo em relação aos homens. A ponto de, no início dos anos 2000, falarmos de um outro tipo de feminismo, que não fazia guerra aos homens. Havia mulheres, mais jovens do que eu e muito liberadas sexualmente, que defendiam um feminismo que não transformava os homens em inimigos. O que é muito lógico, porque, se você vive sua sexualidade intensamente, quer manter a relação com os homens. Falávamos então em feminismo pro sex. Sempre me interessei muito por essa vertente do feminismo. Agora, o que se passa hoje é que surgiu uma espécie de feminismo puritano. Eu ainda procuro uma explicação para isso. Acredito que provavelmente há várias explicações para esse fenômeno. Uma delas, penso, é que existe hoje na sociedade uma relação com o corpo que é mais narcisista do que era antes. Isso explica que uma jovem tocada por um homem em um metrô perceba esse gesto como uma ameaça tão grave a sua integridade. Para uma jovem criada de uma forma extremamente narcisista, que promove uma espécie de sacralização do corpo, esse contato é uma agressão terrível contra a sua pessoa. Para uma geração bem mais jovem do que eu, isso é terrível.
Qual seria, no seu ponto de vista, a diferença entre assédio (o manifesto fala em "liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual") e violência?
Há uma gradação quase infinita entre uma grosseria, um tipo de assédio menor, e um assédio realmente grave. Somos assediadas por um homem que nos faz propostas a cada vez que nos vê. Depois de receber alguns nãos, ele vai parar. Um homem que continua insistindo, apesar das negativas, está praticando uma violência moral, e pode ser o caso de prestar queixa na polícia. Isso eu compreendo e respeito. Por trás de tudo aquilo que chamamos de "assédio" há coisas bem diferentes, que vão da mera perturbação ao caso de polícia ou mesmo à violência física.
A senhora admite que movimentos como o Me Too apresentam pontos positivos – como, por exemplo, romper com o silêncio das mulheres diante de violências físicas ou morais cometidas pelos homens?
Não acho que o movimento seja de todo negativo. O que quisemos denunciar com nosso manifesto são os excessos do movimento, não o movimento em si. Penso que esse movimento é muito importante para as mulheres que, pelo tipo de contexto social em que estão inseridas, não têm acesso à palavra. É muito mais importante para a mulher que trabalha como balconista numa loja e que tem poucas possibilidades para se defender do que para uma atriz de Hollywood com educação e experiência de vida. Não é a mesma coisa para todas. Acho que as mulheres vivem em situações muito diferentes umas das outras.
A senhora acredita que mulheres de países desenvolvidos podem, de alguma forma, ajudar as mulheres de países como o Brasil, que registra índices chocantes de violência doméstica?
Uma das coisas que mais me chocaram no momento em que a repercussão ao manifesto era mais intensa é que vi jornais da França dando mais importância para as denúncias de cineastas, professoras universitárias, atrizes, estudantes do que para a utilização do estupro como arma de guerra na Síria, por exemplo. Lembro de ver muitas páginas de jornais em que o manifesto ganhou mais destaque do que as notícias sobre os estupros na Síria. Esse, para mim, é um grande risco: que problemas mais graves que acontecem no mundo com as mulheres sejam colocados em segundo plano. Eu falava de narcisismo. Penso que existe um tipo de narcisismo individual, na maneira como uma pessoa encara seu próprio corpo, e também um narcisismo cultural. O narcisismo que dá a entender que são mais importantes as coisas que acontecem a sua volta. É o narcisismo de uma sociedade que vive no conforto.
Para as mulheres francesas, qual seria a causa mais relevante atualmente?
A igualdade de salários, sem dúvida. Isso para mim é muito mais importante do que o fato de que alguns rapazes não se comportam bem com relação às moças (risos). É nisso que deveríamos concentrar a maior parte dos nossos esforços. A lei de igualdade salarial até existe na França, mas infelizmente não é respeitada.
A senhora tem criticado o crescente puritanismo da nossa época, mas, paradoxalmente, a cultura pop explora a sexualidade de forma ostensiva. De que maneira essas duas realidades se articulam?
Acredito que vivemos em uma época esquizofrênica. Por um lado, há uma exibição sexual permanente em todos os lugares, e o sexo é usado para vender todos os tipos de mercadoria. Ao mesmo tempo, vemos uma geração que sofre de uma certa inibição em relação ao sexo – talvez como reação à enorme pressão de ser obrigado a atender a determinado modelo imaginário de perfeição. A garota não se identifica com a beleza irretocável das modelos de revista. O garoto se pergunta se será tão performático quanto o ator que ele vê atuando nos filmes pornôs. Isso tudo acaba tendo efeito sobre os jovens mais suscetíveis e ingênuos.
Nos jornais, o 'Manifesto das Mulheres Francesas' ganhou mais destaque do que os estupros na Síria. O risco é que problemas mais graves que acontecem com as mulheres no mundo sejam colocados em segundo plano. isso é uma espécie de narcisismo.
CATHERINE MILLET
Em 2018, estamos celebrando os 50 anos do Maio de 68. Qual o legado do movimento?
Eu tinha 20 anos em 1968 e já estava trabalhando, colaborando com revistas culturais. Infelizmente, não estava na universidade e não participei do movimento, mas morava no bairro de Paris onde aconteceram as manifestações. Acabei de escrever um artigo, encomendado pelo jornal Libération para uma edição sobre Maio de 68, em que falo sobre um episódio que aconteceu um ano antes, em março de 1967. Foi no campus de Nanterre – a universidade em que o movimento começaria, um ano depois. No campus de Nanterre, havia uma regra que proibia que as moças recebessem visitantes nos dormitórios. Os rapazes podiam receber as moças, mas não o contrário, o que é bizarro. E houve uma revolta enorme para mudar as regras. É engraçado lembrar que uma das motivações originais do Maio de 68 é que rapazes e moças queriam poder passar a noite juntos.
Maio de 68 teve um profundo impacto na forma como encaramos o sexo nos dias de hoje.
Para a minha geração, foi um momento de grande liberação em relação à educação que recebemos dos nossos pais. Houve uma verdadeira explosão. E, inclusive nos anos seguintes, pelo menos na França, houve desdobramentos, como o movimento de liberação feminina e os movimentos em favor dos direitos dos homossexuais. Maio de 68 deu início a uma tomada de consciência em relação à diversidade da sexualidade. Na França, por exemplo, o movimento Mariage Pour Tous (casamento para todos) para os homossexuais é consequência direta do Maio de 68.
Ainda assim, publicado mais de 30 anos depois, seu livro A Vida Sexual de Catherine M. provocou certa polêmica...
Não acho que houve polêmica. Houve, sim, alguns ataques ao livro, mas poucos, e não do grande público. Houve ataques de intelectuais como Jean Baudrillard (1929-2007), que na época era muito conhecido no Brasil. Baudrillard me ironizou e me chamou de "virgem louca". Mas tive muitos encontros com o público, nas livrarias, em vários países, e nunca sofri ataques do público. Mesmo sem terem vivido as mesmas experiências sexuais, as pessoas em geral aceitam que elas existam e sejam praticadas. Isso demonstra uma certa evolução da mentalidade.
No Brasil, temos assistido a uma certa associação entre a direita política e o conservadorismo dos costumes.
Na França, é diferente. A direita intervém pouco no campo dos costumes. A direita se preocupa com a imigração. Critica a União Europeia e se preocupa com a identidade cultural e nacional da França, mas não com as questões do corpo. O novo grupo que tem demandado censura é a esquerda, são as feministas. Se um filme representa a mulher de uma forma que não lhe convém, pede que o filme seja censurado ou que o quadro no museu não seja exibido porque a mulher é representada de determinada forma considerada degradante. São mulheres de esquerda que estão pedindo censura.
Qual a situação da esquerda atualmente em seu país?
Na França, a esquerda é praticamente inexistente neste momento. O Partido Socialista está derrotado, não há líder. O movimento La France Insoumise (França Insubmissa), de Jean-Luc Mélenchon, pertence a uma esquerda populista e demagógica da qual os intelectuais de esquerda desconfiam bastante. Há momentos em que Mélenchon e Marine Le Pen dizem as mesmas coisas sobre a Europa, defendendo o mesmo approach nacionalista. Muitos comentaristas políticos têm dito que, neste momento, os extremos estão se unindo.
Qual a sua opinião sobre o presidente Emmanuel Macron?
Estava bastante desconfiada no início do governo. Ele é um jovem muito ambicioso, e me perguntava se ele queria apenas satisfazer sua ambição ou se realmente tinha projetos. Neste momento, acredito que ele evoluiu. A França é um país esclerosado, paralisado em diferentes aspectos. E Macron chegou com sua juventude, sua impetuosidade, e começou a fazer as coisas se mexerem.
Como escritora, a senhora acredita que exista alguma particularidade na literatura feita por mulheres?
Eu me coloco muito essa questão. A única resposta que encontrei até agora é que me parece que as mulheres procuram muito a verdade quando escrevem. Falo por mim, mas não apenas. Para mim, o que caracteriza a literatura feita por mulheres hoje, na França – e há muitas escritoras excelentes na França –, é o esforço para descrever as coisas como elas realmente são, sem maquiar a realidade. Como se dissessem: "Bom, não desempenhamos um papel muito importante na literatura durante muito tempo e, agora que começamos, queremos mostrar o que pensamos sobre as coisas e como vemos a realidade"