A astrônoma e astrofísica Duília de Mello, 54 anos, olhou para fora do planeta antes de muitos de nós. Nos anos 1990, a cientista paulista viu as imagens do universo pelas lentes de um dos primeiros telescópios a se popularizar – o Hubble. Iniciou a carreira quando a astronomia era uma ciência que a maioria dos brasileiros conhecia apenas pelos filmes de ficção científica. Chegou à National Aeronautics and Space Administration (Nasa), agência espacial dos Estados Unidos, algo raro para quem teve sua formação no Brasil, país com pouco investimento em pesquisa científica (leia mais sobre sua trajetória ao final desta entrevista). A seguir, ela relembra toda a sua trajetória, fala sobre a necessidade de o pesquisador dar visibilidade a seus trabalhos, sobre a situação da ciência (e dos cientistas) no Brasil e, agora, de sua mais recente missão: resgatar, nos EUA, um dos maiores acervos brasilianistas no planeta.
Sua trajetória é um exemplo para quem sonha em ser cientista. Como a senhora chegou à Nasa?
Eu era uma menina nerd, gostava de matemática, ficção científica. Às vezes, as meninas não têm muito incentivo. No meu caso, fui incentivada pelos meus professores. Decidi que ia estudar astronomia para entender o universo. Eu tinha uma ansiedade pelo futuro. Éramos de uma família modesta. Meu pai era uma pessoa complicada, alcoólatra. Eu era a filha mais nova de quatro irmãos. Meus irmãos já estavam, como dizia minha mãe, encaminhados. Faltava eu. Quando revelei que queria fazer astronomia, houve um pouco de crise lá em casa, porque ninguém sabia o que era. Minha mãe falou: "Como você vai viver disso? Você vai morrer de fome, no Brasil não tem apoio". Mas ela foi superlegal, decidiu me levar à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde havia um curso de astronomia. Eu tinha 16 anos, fiquei fascinada. Fiz astronomia na UFRJ, depois mestrado, depois doutorado. Mais tarde, fui para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eu gostava de radioastronomia, era fascinada pela história dos radiotelescópios e das grandes antenas.
Áreas como a física e a astronomia constituem um campo marcado pelo domínio dos homens. Isso está mudando ou não?
É um campo de homens, mas há mulheres de impacto. Até tive professoras, mas, na maioria, são homens, mesmo. Eu diria que há de 25% a 30% de mulheres no campo. Na física, menos: só uns 5%. A astronomia é um pouco melhor, mas ainda assim... É dominada por homens. Tive o privilégio de trabalhar com mulheres logo no começo. Depois, mudei de área de trabalho, fui para a astronomia óptica, para parte do meu doutoramento, na Universidade do Alabama. Voltei para o Brasil, defendi minha tese na Universidade de São Paulo (USP), tenho o maior orgulho disso. Sou muito feliz de ter feito minha carreira acadêmica no Brasil. Mas aí o Brasil caiu no precipício novamente.
Sou fruto do investimento do Brasil em ciência. O Brasil investe em ciência, forma cientistas como eu. Vários. O problema é que o país está esquecendo de investir na contratação dos cientistas. e nas pesquisas que eles fazem.
DUÍLIA DE MELLO
Astrônoma e astrofísica
A senhora está decepcionada com o país?
Desde minha iniciação científica, no Observatório Nacional, no Rio, eu tive bolsa. Fui bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de todas as agências de fomento. Sou fruto do investimento do Brasil em ciência. Quando a gente fala que o Brasil não investe em ciência, a gente tem de prestar atenção. O Brasil investe em ciência, forma cientistas como eu. Vários. O problema é que o país está esquecendo de investir na contratação dos cientistas. E nas pesquisas que eles fazem.
O Brasil forma cientistas, mas eles não têm onde trabalhar, é isso?
Nem é tanto isso. O problema, para o desenvolvimento da ciência no Brasil, é que tudo é cíclico no país. Depende de quem está no poder, do partido, do presidente. Saí de uma transição, da ditadura militar para a democracia. Fiz Diretas Já, fiz passeata na Avenida Presidente Vargas (no Rio), chorei quando Tancredo Neves morreu (em 1985). O Brasil investia no pessoal, mas não investia no momento seguinte à formação. Já na democracia, com o presidente Fernando Henrique Cardoso, houve um corte enorme na ciência. Fiquei muito decepcionada. Esperava que o Brasil começasse a amadurecer, mas aí houve a ameaça de corte em 50% das bolsas dos pós-doutores... Por isso, decidi fazer minha carreira no Exterior. Eu tinha prometido para a minha mãe que ia viver de astronomia! Comecei a mandar e-mails, estava no mercado de trabalho. Um pesquisador do Hubble (histórico satélite lançado pela Nasa), Claus Leitherer, que conheci em um congresso, me ligou. Sou muito grata a ele. Claus transformou minha carreira no que ela é hoje. Ele estava construindo um projeto de alto impacto, de previsões das populações estelares das galáxias. Foi a minha catapulta na carreira. Comecei direto no Hubble!
Nos anos 1990, o Hubble foi nosso primeiro olhar para o universo. Mas Será aposentado, não?
O Hubble está vivo e com saúde (risos). Ainda tem alguns anos de vida. Foi lançado em 1990, mas teve problemas nos primeiros três anos. O espelho estava fora de foco, precisou que astronautas fossem consertá-lo. Em 1993, começou a mostrar para a gente o universo como o conhecemos hoje. Antes, era tudo feito aqui da Terra. E ainda é feito daqui, de forma fantástica. Hoje, de forma muito melhor do que em 1993, com telescópios muito maiores. Mas o Hubble tem a vantagem de ser um satélite, está acima da atmosfera. Por isso, as imagens são mais nítidas. O Hubble não é um telescópio muito grande, tem 2,5 metros de diâmetro. Há telescópios, aqui na Terra, de 10 metros de diâmetro. O tamanho, aí, é documento. Porque, quanto maior o diâmetro do espelho, mais luz você capta, melhor é sua imagem, você consegue ver coisas mais distantes. O Hubble sofreu vários reparos nesses 30 anos. Atualmente, não pode ser mais consertado porque a gente não tem mais ônibus espacial. Não tem jeito de ir até lá. Todo o equipamento que está lá é o último: a última câmera, último tudo. A expectativa é de que o Hubble dure mais uns quatro anos. Em 2019, lançaremos o seu substituto, um projeto chamado James Webb, nome do primeiro administrador da Nasa. Ele tem uma capacidade bem diferente do Hubble. É um telescópio que vai ver na luz infravermelha, vai estar bem longe da Terra. O Hubble é um satélite, está pertinho, a 600 quilômetros de altura. Esse outro estará bem mais distante: a 1,6 milhão de quilômetros. Tem de estar longe do sol por causa do calor. A gente quer ver os primórdios do universo. Vai novamente mudar a nossa visão do universo. O Hubble fez isso, contribuiu. Agora, a gente quer ver as coisas mais profundas.
Em 1997, a senhora fez a descoberta de uma supernova. Como foi?
Foi bem legal. Eu era pesquisadora do Observatório Nacional e estava observando em um telescópio no Chile. Isso aí mostra que, quando você dá um instrumento para um cientista brasileiro, ele é capaz de fazer grandes descobertas, no país ou no Exterior. Eu observava um grupo de galáxias, durante a noite. Sou metódica quando faço minhas observações, havia uns mapinhas de cada galáxia que observava. Porque você entra no computador, dá a coordenada da galáxia, e o telescópio vai. Você tem sempre de conferir para onde está apontando. Notei que havia uma estrela a mais. Meu namorado, que hoje é meu marido, trabalhava no observatório. Ele ia dormir, porque é radioastrônomo, trabalhava durante o dia. Ele veio me trazer um misto quente. Eu falei: "Espera aí, fica mais 15 minutos, acho que descobri uma supernova". Ele falou: "Ah, tá brincando". Ficamos esperando. Na hora em que apareceu, foi aquela surpresa. Chamei o astrônomo encarregado do observatório, mostrei o que eu tinha observado, e ele falou: "É uma supernova". E agora? Olha, pela manhã, mostrei o mapinha ao astrônomo italiano encarregado das supernovas do Observatório Europeu. E foi isso. Essa supernova é a mais fraca já observada até hoje. É importante porque temos muitas teorias sobre a explosão de estrelas. Estrelas maiores explodem. As menores, como o sol, não. A gente precisa das mais fracas e das mais fortes para setar os parâmetros de evolução estelar que vão nos dizer qual é a massa suficiente que vai garantir a explosão da estrela.
Agora, a senhora ocupa o cargo de vice-reitora da Universidade Católica da América e tem uma nova missão: recuperar a biblioteca do diplomata brasileiro Manoel de Oliveira Lima (1867–1928). Como será esse trabalho?
Quando voltamos aos Estados Unidos (depois de uma temporada vivendo na Suécia), meu marido foi trabalhar no Hubble, e eu, no Goddard Space Flight Center. Como não sou norte-americana, para trabalhar na Nasa, alguém tem de ser contratante. A Universidade Católica faz esse papel. Em 2008, convidaram-me a fazer concurso e ser professora. Estou aqui (nos EUA) desde 2008, mas sempre com um pé na Nasa. Quando fui promovida a professora titular, eu precisava definir como seriam meus próximos 10 anos de carreira. Um reitor novo tinha acabado de começar, e eu falei que tinha interesse em administração. Isso há três anos. Ele falou que havia uma vaga e me contratou para ser vice-reitora. Falou-me que havia um projeto de recuperação da biblioteca do Oliveira Lima, que não poderia ficar fechada porque isso viola o testamento dele – nos comprometemos a manter a biblioteca dele para sempre. Ela já está aqui há cem anos! Sou chefe de uma comissão administrativa da biblioteca. Começamos a pensar projetos que vão levantá-la para outros cem anos. A transformação da biblioteca em um Centro Brasil, baseado no legado deixado pelo Oliveira Lima, vai nos conectar mais com o Brasil. Então, é um pouco diferente, sim. Sou astrônoma, mas também sou vice-reitora. Tenho muito amor pela coleção da biblioteca. Ela é muito conhecida, e não só aqui na universidade, porque é a maior coleção brasilianista fora do Brasil.
O cientista não pode ficar dentro do armário. Tem de sair do laboratório, tem de ir lá na escola, dar entrevista. Com os cortes recentes de verbas para a ciência, houve uma marcha em São Paulo. Foram só mil pessoas. Quase chorei.
DUÍLIA DE MELLO
Astrônoma e astrofísica
O acervo é impressionante. tem Edições raras de Os Lusíadas, cartas trocadas com grandes personalidades da época. O que mais a senhora encontrou?
É incrível. Oliveira Lima era um amante dos livros. Ele e a esposa, Flora, colecionavam livros conforme viajavam pelo mundo. Ele era diplomata. Tinha um grande amor pela história da colonização portuguesa, focou sua coleção nisso. O livro mais antigo é de 1507. Trata-se do primeiro relato impresso da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil: Paesi Nouamente Retrouati – Et Nouo Mondo da Alberico Vesputio Florentino Intitulato, do cartógrafo italiano Francazano de Montalboddo.
A senhora leu?
É difícil de ler, primeiro porque é muito raro, você não pode manuseá-lo. A coleção tem coisas incríveis. Uma das peças mais famosas é o Barleus, livro enorme com mapas, reportando a época dos holandeses em Pernambuco. A gente tem a cópia colorida, só há três no mundo. Temos a quarta edição de Camões, só existem seis hoje. Os livros raros são especiais, são em torno de 6 mil, muito destes contemporâneos do próprio Oliveira Lima. Há muita literatura brasileira. Ele foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL). Deve ter 1 milhão de cartas de Machado de Assis, um monte de coisa de Lima Barreto. Gilberto Freire era muito amigo deles, meio pupilo do casal enquanto estudava aqui nos EUA. Ele, Gilberto Freire, foi o primeiro visitante oficial da biblioteca, aberta em 1924.
Quando esse material ficará disponível para consulta?
O material está disponível, só é difícil de estudar. Os diplomatas o usam com frequência. A biblioteca ficou dois anos fechada, mais ou menos, mas agora está disponível. A gente tenta atender todo mundo que nos procura. Esperamos que nesse Centro Brasil, para o qual estamos tentando achar fundos, tenhamos suporte. Temos muitas obras de arte, e isso me preocupa muito. Os livros raros estão em bom estado, mas as obras de arte, não.
São pinturas?
São mais de 600 peças, entre quadros, esculturas e objetos de valor. Temos uma pintura que está emprestada para a National Gallery com avaliação de US$ 4 milhões. É um Frans Post, um renascentista holandês que passou um tempo em Pernambuco. Foi ele que fez todo o desenho do Barleus, uma das obras mais bonitas da nossa coleção. A gente tem outro quadro, uma pintura francesa do Taunay, do Rio de Janeiro... É maravilhoso. Eu gostaria que a National Gallery pegasse também emprestado esse quadro, porque não acho que esteja em condições realmente seguras. Temos também uma escultura de Dom Pedro I feita por um escultor francês. Só há três no mundo. Temos seis quadros de Antônio Parreiras. Há coisas fantásticas aqui. Os nossos quadros estão em mau estado, têm mais de cem anos, precisam de carinho. Queremos muito fazer um convênio.
Stephen Hawking morreu neste ano. Ele era um cientista que inspirava muito os jovens. Como a senhora, que inclusive tem um livro infantil, chamado As Aventuras de Pedro. Como despertar nas crianças o sonho de explorar o universo e realizar-se nessa profissão no Brasil?
Às vezes, falta um pouco de oportunidade para divulgar a ciência. Hawking foi um dos maiores divulgadores de ciência do mundo. A morte dele foi sentida por pessoas que mal conhecem a ciência, mas tinham admiração por ele, até pelas suas condições físicas. Ele fazia esse papel de divulgador da ciência. Há uma geração de jovens que foi impactada por Hawking, que virou cientista por causa dele. A gente precisa de mais pessoas assim, que inspirem os outros. A partir do momento em que a gente continuar inspirando os mais novos, a tendência é que o Brasil continue investindo em ciência. O cientista não pode ficar dentro do armário. Ele tem de sair do laboratório, da sala de aula, tem de ir lá na escola, dar entrevista. Começamos a fazer isso, mas ainda modestamente. Com os cortes recentes de verbas para a ciência, feitos pelo governo federal atual, houve uma marcha em São Paulo. Uma marcha pela ciência. Foram só mil pessoas. Quase chorei. Como pode? Claro que a gente tem de se preocupar em fazer uma ciência fácil. Isso é difícil: explicar conceitos complexos em linguagens simples. Por isso, o cientista fica meio arredio.
E, às vezes, a imprensa simplifica demais quando divulga esse tipo de questão.
E, no processo de simplificação, sai coisa errada. Aí o cientista fica bravo. Não entende que um amadurecimento da mídia também precisa acontecer. É possível, sim, fazer divulgação científica. Toma tempo, o cientista tem de se dedicar. Faço isso há 20 anos. Desde que descobri a supernova, fiquei conhecida como a mulher das estrelas. Escrevi (o livro) Vivendo com as Estrelas para inspirar os jovens com a minha carreira. É um passo que precisamos dar. Está melhorando, vejo colegas fazendo isso. Temos de nos unir para mostrar a importância da ciência na hora em que a sociedade decidir as suas prioridades.
Trajetória
Vencedora do prêmio Diáspora Brasil em 2014 (quando foi definida como "astrofísica extragaláctica"), Duília de Mello nasceu em Jundiaí (SP) e passou a infância no subúrbio carioca de Brás de Pina. Teve sua formação integral no Brasil, até ser convidada a trabalhar no Goddard Space Flight Center, mais antigo laboratório de pesquisas espaciais da Nasa, em 2003. Ela descobriu a supernova SN 1997D (no Chile, em 1997) e participou também da descoberta das chamadas bolhas azuis (estrelas órfãs, sem galáxias). Em 2009, lançou o livro autobiográfico Vivendo com as Estrelas, que inclui dicas para os jovens interessados em fazer carreira na ciência.