Astro da arte contemporânea, arquiteto e cineasta, Ai Weiwei transformou-se em uma das vozes mais potentes na luta pela liberdade de expressão. Após usar as redes sociais para denunciar a censura do regime comunista na China, foi agredido, preso e impedido de deixar o país natal por quatro anos. Quando saiu, em 2015, engajou-se na crise dos refugiados produzindo o documentário Human Flow – Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir (2017). A partir do dia 20, algumas de suas obras mais famosas e monumentais poderão ser vistas em São Paulo. A Oca do Ibirapuera recebe sua maior exposição solo até hoje, Ai Weiwei Raiz, com curadoria de Marcello Dantas. Na segunda-feira (8/10), Weiwei esteve em Porto Alegre para participar do Fronteiras do Pensamento e recebeu GaúchaZH para uma entrevista exclusiva sobre a sua história de vida, arte e política.
É possível separar arte e política?
Para mim, é uma coisa só: não há separação. Não consigo separar uma conversa entre "nós, os artistas" e "nós, os ativistas políticos".
No dia 20, São Paulo vai receber a maior exposição da sua carreira, Ai Weiwei Raiz. por causa dela, você visitou o Brasil quatro vezes no último ano e montou oficinas para produzir obras por aqui. O que pode contar sobre essa aproximação do país?
Na verdade, antes mesmo de ser preso, em 2011, já começava a pensar nessa mostra. Para mim, a América Latina sempre foi fascinante, porque meu pai visitou o continente na década de 1950 e frequentemente falava dessa experiência. Mas eu tinha de encontrar uma maneira de fazer uma exposição que tivesse relação com minha própria experiência aqui. Cada nação tem sua identidade e sua história, e eu preciso entendê-las. Esta será a união de duas exposições, uma itinerante, que passa por Argentina, Chile e Brasil, e outra originada dessa experiência brasileira, lidando com artesãos e materiais daqui do país. A ideia, para mim, é aprender mais sobre a cultura brasileira e também me adaptar à paisagem artística local.
Muitas de suas obras são produzidas em colaboração com artesãos. um exemplo é Sementes de Girassol, que fará parte da mostra em São Paulo, na qual você empregou 1,6 mil artesãos para fabricar 100 milhões de pequenas sementes de porcelana, pintadas à mão. O que isso significa para você?
O artesão carrega em si a história e a linguagem da arte. Cada local precisa de uma linguagem. Você vê arte africana, brasileira, chinesa... É possível distingui-las porque cada uma carrega significados sobre como quem a produziu se relaciona com seu ambiente e sua cultura.
Como é sua relação com a China hoje?
Fui solto em 2015 (havia sido preso em 2011, tendo passado os primeiros dias desse período desaparecido e, depois, em prisão domiciliar), então tenho vivido fora da China há três anos. Me disseram que sou livre para voltar. Hoje tenho um passaporte chinês. Voltei duas vezes e não tive problemas. Mas dois advogados meus estão presos. Então, você nunca sabe...
Você tem medo de voltar?
Não. Porque não sou criminoso. Tudo que fiz foi tentar tornar a China um lugar melhor. Mas tento evitar conflitos, porque eles não fazem bem para mim, nem para a minha família.
Em agosto, seu estúdio em Pequim foi demolido pelo governo. Como se sente sobre isso?
Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2010, meu estúdio recém-construído em Xangai foi arrasado de maneira idêntica. É claro que fiquei bravo e surpreso, mas também é preciso aceitar a realidade: a China constitui uma sociedade que não te dá respostas claras e na qual não há espaço para negociação.
Frequentemente, o patriotismo reflete estupidez. Temos de defender os direitos humanos, e não uma nação ou área específica. Não há nação pela qual valha a pena ser patriota.
AI WEIWEI
Artista e ativista chinês
Você perdeu obras?
A equipe correu para retirar as obras antes que tudo fosse destruído. Alguns trabalhos pequenos e outros que não estavam prontos foram danificados.
Apesar de tudo, você segue trabalhando na China e tem estúdios lá?
A maioria dos meus assistentes e colegas é da China. Eles seguem trabalhando em locais diferentes.
O Brasil vive um momento de crise, com pessoas falando inclusive em deixar o país. Como você concilia os conflitos e as críticas ao governo com seu amor pela China?
Cada país tem sua história e cultura, mas o sistema político não representa necessariamente aquela cultura. Todos os lugares passam por crises. E, quando você luta contra isso, como eu, não há garantia de que irá ganhar. Você pode perder tudo, perder a possibilidade de ficar no seu país e até a sua vida. Mas a luta está sempre lá. Se queremos prover um futuro melhor para os nossos filhos, é nossa responsabilidade defender nossos valores. Tudo depende do quão ruim as coisas ficarem. Se começar a afetar a maneira como as pessoas vivem e a possibilidade de se desenvolverem, vão começar a ir embora. Aí é preciso mesmo sair e encontrar um novo lugar, porque a vida é curta.
Minha experiência de vida me indica que não há um lugar que eu possa chamar de casa. Só posso me associar à liberdade de expressão, aos direitos humanos e à defesa da condição humana. Agora, se nenhum lugar é lar, todo lugar pode ser lar.
AI WEIWEI
Artista e ativista chinês
Você já afirmou que não há lugar que chame de lar.
Minha experiência de vida me indica que não há um lugar que eu possa chamar de casa. Só posso me associar à liberdade de expressão, aos direitos humanos e à defesa da condição humana. Agora, se nenhum lugar é lar, todo lugar pode ser lar. Porque sempre há pessoas cujos direitos foram violados, sempre há pessoas prontas para defender sua dignidade, e posso sempre me associar a essas pessoas. Não tenho um lar, mas todos os lugares podem ser um lar.
O que você pensa sobre o patriotismo?
Frequentemente, o patriotismo reflete estupidez. Temos de ser patriotas com relação a toda a humanidade. Temos de defender os direitos humanos, e não uma nação ou uma área específica. Não há nação pela qual valha a pena ser patriota.
Você acredita em um mundo sem fronteiras? Não seria algo utópico?
Não é possível atualmente, mas é possível na nossa mente e no nosso coração – então não é uma utopia. Estamos lutando para que todos compreendam que a dignidade humana é nossa verdadeira terra natal, e todos devem defendê-la.
A filmagens do documentário Human Flow – Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir (2017) levaram você a visitar 23 países e conhecer centenas de refugiados. Como foi essa experiência?
As filmagens se tornaram possíveis em 2015, depois que obtive meu passaporte. No final do ano, levei meu filho e minha namorada a Lesbos. Acredito que é a ilha grega que recebe o maior número de refugiados, de Síria, Afeganistão, Paquistão, Iraque... Foi minha primeira experiência frente a frente com esses refugiados. Comecei a usar meu iPhone para filmar, é o que sempre faço. Então, liguei para meu estúdio em Berlim e organizei uma mudança dele para a ilha para filmar mais. Começou assim, espontaneamente. Na época, não sabia a extensão do problema. Juntamos uma equipe de pesquisa sobre a história de refugiados em diferentes locais. Isso foi crescendo, e me levou a viajar para África, Oriente Médio, Israel, Gaza, Iraque, Afeganistão, Líbano, Jordânia, Turquia. Entrevistamos 600 pessoas. Para mim, foi uma experiência educacional. Você aprende muito indo a esses lugares, conhece as pessoas, descobre por que se tornaram refugiadas, como é a vida nessa condição e qual é o futuro delas. Há 68,5 milhões de refugiados no mundo hoje. E cada refugiado passa, em média, cerca de 25 anos assim.
Você viveu em Berlim nos últimos três anos. A Alemanha está lidando melhor com essa crise?
Ninguém está acertando. A Alemanha aceita certo número de refugiados, é melhor do que muitas nações, como a Polônia ou a República Tcheca, mas o futuro dessas pessoas, na Alemanha, é incerto. Agora, o país começou a enviar de volta refugiados afegãos. E o Afeganistão não é uma nação segura. Há muitas violações aos refugiados na Alemanha. Há muitos refugiados que enlouquecem naqueles acampamentos, porque ninguém fala com eles, são simplesmente largados lá. É uma situação muito triste.
O Brasil está recebendo refugiados, mas em escala menor. você Tem alguma sugestão para integrá-los?
É muito diferente. Quando refugiados da Síria vão para Líbano, Jordânia ou Turquia, eles ainda têm uma comunidade. Quando os venezuelanos vêm ao Brasil, a cultura deles tem alguma relação. Mas, quando um refugiado do Oriente Médio vai à Alemanha, é muito difícil, por causa da língua, dos costumes, da religião. Eles estão totalmente alijados de suas raízes.
Ainda assim, há muita gente insensível ao drama dos refugiados. É aí que a arte pode ajudar?
Comunicação é importante. Nós presumimos que todos têm um bom coração. Afinal, você tem filhos, pais, e não faz a mesma coisa com eles. Agora, se você não vê, nem escuta, pode dizer que não sabe o que está acontecendo. Então hoje, por meio da mídia, da arte, do cinema, você força as pessoas a ver que é real. Se, ainda assim, a pessoa ficar indiferente, é porque é desumana, não tem compaixão. Isso acontece. Muitas pessoas preferem ser desumanas.
Hoje, por meio da mídia, da arte, do cinema, você força as pessoas a ver que é real (o drama dos refugiados). Se, ainda assim, a pessoa ficar indiferente, é porque é desumana, não tem compaixão.
AI WEIWEI
Artista e ativista chinês
Você usou as redes sociais para criticar o governo chinês. mas essas redes têm interesses privados que se sobrepõem a essa função social de dar voz às denúncias. como você enxerga essa questão?
Meu caso é que eu estava na China, então não havia plataforma para nenhum tipo de discussão pública. Não havia vozes individuais. Por um breve período, o governo chinês não sabia como controlar as redes sociais. Esse foi o tempo em que fui mais ativo. Só que, em seguida, calaram a minha voz. Agora, meu nome não pode aparecer nas redes sociais na China. É como se eu estivesse morto lá. Agora que vivo fora da China, ainda uso as redes sociais, só que elas têm muito menos significado porque há outros meios de expressão: filmes, exposições, entrevistas.
Você é um crítico das redes sociais?
É triste. Hoje, quase tudo pode ser definido pelo capitalismo. Até os desejos humanos são moldados pela ideologia capitalista que põe o lucro em primeiro lugar. É por isso que as corporações têm tanta influência. A própria globalização é baseada na exploração de pessoas pobres e de países subdesenvolvidos. As redes sociais funcionam segundo essa mesma lógica: raramente há pensamento realmente independente nas redes.
Embora seja crítico ao governo chinês, você trabalhou no estádio Ninho de Pássaro, que virou objeto de propaganda do regime comunista na Olimpíada de 2008. Por que participou da obra?
Quando trabalhei no estádio, eu era um arquiteto, não atuava como artista e tampouco era chamado de ativista. Nunca trabalhei com o governo, o que houve foi que ganhamos uma concorrência na qual ninguém sabia quem estava competindo; nosso grupo foi selecionado pelo projeto sem que soubessem quem éramos. A Olimpíada de 2008 foi um momento de virada: ali me dei conta de que o estádio se tornaria uma ferramenta de propaganda. Foi um ponto de partida para que começasse a criticar o regime. Naquele ano, quando a província de Sichuan foi atingida por um terremoto que matou 70 mil pessoas, eu quis saber quem eram aqueles mortos. E o governo não respondeu. Queria esconder a tragédia. Então, comecei um movimento de desobediência civil, indo de vila em vila para perguntar quem eram, até chegar a 5.219 nomes. E publiquei isso no meu blog, assim como as notícias de que pessoas que nos ajudaram foram espancadas e presas. Isso deixou o governo nervoso. Desativaram o meu blog. Depois me espancaram. Me prenderam. Lá, não demora até que façam isso.
A beleza estética sempre está relacionada à moral e à filosofia. Nunca separo essas coisas, porém, a maioria das escolas de arte faz isso. Tratam a beleza estética como algo puro. Isso não existe. A beleza estética nunca é pura, está sempre relacionada ao nosso julgamento moral, à religião ou a algo em que acreditamos.
AI WEIWEI
Artista e ativista chinês
É possível fazer arte sob um regime totalitário?
Sim. Viver num regime totalitário é um ótimo motivo para fazer arte. É difícil sobreviver, mas fiz muitos de meus trabalhos sob essa condição...
Até a sua personalidade foi moldada por essa realidade opressiva, não?
Sabe, há muitos tipos de peixes. A personalidade deles é moldada pelo lugar onde vivem. Alguns vivem em um riacho, então têm músculos fortes, precisam saltar contra a corrente para pôr ovos. Outros, vivem tranquilos na escuridão e pouco se movem. Todos nós somos parte do nosso ambiente.
A arte contemporânea tem público restrito. Qual o caminho para ampliá-lo?
É preciso falar com a linguagem do povo. Acredito que todo mundo tem uma sensibilidade para a beleza. Você nasce com isso. Mas a avaliação do que é beleza sempre foi dominada por pessoas privilegiadas, curadores, colecionadores. É como o capitalismo, que lhe vende uma ideologia, que essa é a vida: ter um barco, uma casa enorme, um jatinho, um carro esportivo. Acho tudo uma grande bobagem. A vida verdadeira pode acontecer num vilarejo muito pobre, quando uma mulher visita a sua vó e naquela tarde, embaixo de uma árvore, as duas costuram juntas, ou então cozinham o jantar. O mais alto sentido da vida está aí, nas histórias pessoais, nos sentimentos humanos. Mas, é claro que isso não vende. Então, gradualmente, essas coisas são reduzidas a nada, o sentimento das pessoas mais humildes se torna nada.
Essa beleza de que você fala é a beleza estética?
A beleza estética sempre está relacionada à moral e à filosofia. Nunca separo essas coisas, porém, a maioria das escolas de arte faz isso. Tratam a beleza estética como algo puro. Isso não existe. A beleza estética nunca é pura, está sempre relacionada ao nosso julgamento moral, à religião ou a algo em que acreditamos, ou a nossa percepção sobre quem somos e onde vivemos. A arte de maior qualidade não é criada por artistas que vendem obras por milhões de dólares, mas pelos africanos. Aqueles trabalhos são a mais alta forma de arte que já existiu. Mas os museus só os colocam em um cantinho, os rotulam de primitivos. A arte sempre foi marcada pelo preconceito. Dizem: "Ó, isso é alta arte, tem uma bela forma", Van Gogh, Monet. São mentiras. Não são ruins, mas, se você comparar com o que a arte africana é hoje... Na arte ocidental, o pensamento é que apenas um indivíduo pode criar uma obra importante. Na arte africana, é preciso gerações para isso. O poder e o significado são muito diferentes.
A arte de maior qualidade não é criada por artistas que vendem obras por milhões de dólares, mas pelos africanos. Aqueles trabalhos são a mais alta forma de arte que já existiu. Mas os museus só os colocam em um cantinho, os rotulam de primitivos. A arte sempre foi marcada pelo preconceito. Dizem: "Ó, isso é alta arte, tem uma bela forma", Van Gogh, Monet. São mentiras.
AI WEIWEI
Artista e ativista chinês
Você não gosta desses artistas europeus?
Ah, eles são só ok (risos).
Em 1994, você polemizou ao destruir uma urna de 2 mil da Dinastia Han. O que pensa sobre a tradição da cerâmica chinesa?
Não penso que a destruí. Eu a recriei. Levantei significados ao questionar por que algo tem valor, qual é esse valor e como esse valor é violento e brutal em relação à nossa sociedade. Tento iniciar essa conversa em vez de ver só a forma. Nenhuma forma deve ser idolatrada; apenas a ideia por trás daquela forma, e não o objeto em si. Se existisse apenas uma urna, nunca teria feito aquilo. Mas, quando há um milhão de urnas, quebrar uma delas não é nada.
Em 2017, você participou de um protesto na Avenida Paulista, contra a onda de ataques à arte. Atualmente, a arte está virando bode expiatório para alguma coisa?
Tudo isso mostra que a nossa alma está ficando fraca, que não conseguimos reconhecer ideias, em suas diferentes expressões, que não conseguimos priorizar a liberdade de expressão. A ideia precisa encontrar uma forma, uma linguagem na qual se expressar, caso contrário não é uma ideia. Calar isso é desumano e destrói uma sociedade. É possível ver isso em várias épocas: calar uma expressão artística tem um custo trágico.