Não é qualquer artista que tem 75 anos de uma carreira brilhante para contar. Fernanda Montenegro, que completará 90 anos de vida em 2019, estará em Porto Alegre para um programa duplo na PUCRS: na segunda-feira (1º/10), às 19h, autografa no Salão de Atos Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico (Ed. Sesc SP), uma edição luxuosa que documenta sua trajetória. Na terça (2/10), às 20h, apresenta no mesmo local a leitura Nelson Rodrigues por Ele Mesmo (ingressos em uhuu.com e no Teatro do Bourbon Country) e recebe o troféu Mérito Cultural PUCRS, nas comemorações dos 70 anos da universidade. Nesta entrevista, ela critica o descaso do poder público com a cultura e com a educação e lembra Eva Sopher, a quem dedicou uma página de sua fotobiografia.
A senhora acaba de lançar sua fotobiografia pelas Edições Sesc e atualmente trabalha em uma autobiografia para a Companhia das Letras. Em um país considerado sem memória, a senhora sente a memória como um dever?
Se você tem uma vida batalhada, ainda mais no campo da cultura, você vai jogar fora tanto material? São 75 anos de artigos, fotos, entrevistas. Viajei sem parar com a nossa companhia durante 30 anos, cruzando este país de Norte a Sul, Leste a Oeste. Isso estava nas gavetas, nos caixotes, enfim, escondido em buracos dentro de um depósito. E aí o Sesc de São Paulo, na figura extraordinária do professor Danilo Miranda (diretor regional do Sesc São Paulo), viu esse material e resolveu fazer esse livro, que me honra muito. E não é só meu. Sem dúvida nenhuma tem imagens aí de 75 anos de entrosamento com colegas, de uma comprovação de vida dura, difícil, de sobrevivência teatral neste país. Esse livro saiu como uma revisão de um século de trabalho de uma pessoa vocacionada para o palco.
Não apenas é a sua história, que é exemplar, como é a própria história da cultura brasileira que passa pela sua trajetória.
De governo para governo, embora os discursos sejam diferentes, você tem sempre a impressão de que a cultura é inimiga da educação, e a educação, coitada, só não é melhor porque tem essa cultura que a atrapalha (risos). Na hora de se escolher um novo governo, um novo presidente, o lado cultural fica como se fosse o bombom da hora do café – um luxo, algo a mais. Pior ainda quando se fala de teatro. Às vezes, há verbas de atendimento cultural, mas, na verdade, a verba, se não está dentro de uma estrutura de vivência cultural ampla, é apenas um socorro para não morrer no fim da linha.
A senhora apresentará a leitura Nelson Rodrigues por Ele Mesmo. por que Nelson segue atual e desacomoda uma parcela do público?
É um desses fenômenos sobre os quais eu, pelo menos, não tenho capacidade de uma avaliação acadêmica. Na verdade, o Nelson nunca teve sucesso em vida, a não ser quando estreou Vestido de Noiva, em 1943. A partir daí, ele foi destituído de qualquer valor intelectual. Isso é um susto porque, se você ler a vida cronística do Nelson, ele é um memorialista de se juntar a Pedro Nava (1903-1984). Mas o teatro dele sempre foi visto de uma forma deteriorada. Porque ele também foi para outra zona da dramaturgia, muito mais intrínseca, muito menos cronística. O texto dele tem sempre uma inquietação de caráter celular, humano. E, hoje em dia, não estou inventando isso, ele é o autor mais estudado nos cursos de teatro e, em muitos lugares desse nosso país, ele está sendo representado (nos palcos).
Todos esses governos não tiveram a capacidade de realmente ter uma visão de construção educacional e cultural.
FERNANDA MONTENEGRO
Atriz
Muito se fala que as temporadas se reduziram. Ficou mais difícil fazer teatro hoje, comparado a décadas passadas?
É que houve um desmonte geral na cultura deste país. E não é de agora, não. E não é só no teatro. É no circo, nas (orquestras) sinfônicas, nos grupos de dança, de balé, enfim. Toda e qualquer arte, neste país, foi destituída da transcendência. Às vezes acham que, dando uma ajuda econômica, (os artistas) vão ficar quietos e seguir adiante. As verbas não vêm dentro de um conceito de junção educacional também. Na medida em que se afasta a cultura da educação, as duas vão mal. Não há educação sem cultura e não há cultura sem educação. Repare bem. Nossa educação está indo melhor? Não. Por mais que nossos candidatos digam que, nos seus respectivos momentos, houve isso e aquilo, e que o outro que está na oposição não fez nada, é lamentável que esses ganhos através dos decênios não se acumulem. Terminando um governo, vai tudo para um buraco, como se nunca tivesse havido nada ali. Porque o que houve não transcendeu, não seguiu adiante. Os fenômenos cultural e educacional não estão nos discursos dos nossos candidatos, seja de que linha ideológica forem. É economia, economia, economia. Por outro lado, a educação e a cultura são vistas como coisas de uma elite. Só vi essa junção, por incrível que pareça, na era getulista, em que o ministério era de educação e cultura (o Ministério da Educação e Cultura durou de 1953 a 1985, quando foi desmembrado em dois ministérios). Não estou me referindo ao Getúlio (Vargas) caudilho, ditador. Estou me referindo ao período em que fui criança e jovem.
O Brasil teve momentos terríveis na sua história. Hoje vivemos um momento de incerteza. A senhora teme pelo futuro do Brasil?
Filho, quem não teme? Para onde vamos? Na minha área (a cultura), e também na área educacional, estou abismada. Ninguém fala sobre isso. E um país sem cultura é um país sem educação. A cultura é que faz um país. O que é um país sem cultura? É uma fronteira. Não tem caráter. É apenas acordar, esperar o dia avançar, se não cair duro, e esperar acordar no dia seguinte. Não há perspectivas. Na minha área, não há. Na área da educação, também não. Que país nós somos?
O folhetim comporta, às vezes de forma até romântica, a ambição de uma justiça social.
FERNANDA MONTENEGRO
Atriz
Nos últimos tempos, alguns grupos têm demonstrado certa hostilidade aos artistas. Como a senhora percebe esse fenômeno?
Acho que é porque (a cultura) ficou restrita a um investimento orçamentário dentro de uma lei. Não vem de uma estrutura real de educação e cultura. Dá um dinheirinho que (os artistas) vão se satisfazer, eles pensam. E não é verdade. É claro que depende de um orçamento. O Ministério da Cultura requer investimento, e o da Educação, também. Mas está fora de uma visão de atendimento social, e isso é altamente ofensivo. (O investimento na cultura e na educação) Está apenas jogado numa verba, maior ou menor, como se fosse uma esmola geral. Todos esses governos não tiveram a capacidade de realmente ter uma visão de construção educacional e cultural.
Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a senhora emocionou o público com uma leitura de Hilda Hilst. E, há alguns anos, a senhora apresentou a peça Viver Sem Tempos Mortos, sobre Simone de Beauvoir. Como vê a importância do protagonismo feminino, uma luta travada há tempos e que ganhou fôlego nos últimos anos?
Vejo a mulher como criatura. Somos criaturas. Não há nada diferente se você carrega esse, aquele ou qualquer outro sexo. Se não temos (igualdade), aí temos que lutar por uma igualdade na nossa presença social e existencial.
A novela O Outro Lado do Paraíso contou com atores como a senhora, Nathalia Timberg, Laura Cardoso, Lima Duarte e Juca de Oliveira, uma faixa etária que carece de mais papéis. Como foi essa experiência?
Sempre estivemos nas novelas e nas séries, às vezes sem protagonismo. Tem de estar ali alguém com uma experiência real no seu ofício para sustentar gerações e gerações que surgem. Dentro da história que se está contando, sempre há diversas gerações. Toda novela tem uma criança e um velho. Nessa nossa novela, o Walcyr (Carrasco, autor) resolveu dar espaço na sua escrita, e o Mauro Mendonça Filho (diretor da novela) nos trouxe para o protagonismo. Então, a nossa geração, comovida, agradece. Sabemos do nosso ofício. Tenho a informação de que, quando nós, velhos, entrávamos com espaço melhor, havia um aumento de audiência. Somamos perto de 500 anos naquela novela (somando as idades dos atores). Isso não quer dizer que os jovens não tenham que estar ali. Do drama mais burguês ao menos burguês, sempre tem a distribuição familiar: papai, mamãe, vovó, neném, adolescente.
A nossa profissão de ator é uma profissão que te mantém em pé.
FERNANDA MONTENEGRO
Atriz
As novelas constituem um dos tipos de dramaturgia mais consumidos no Brasil. A senhora acredita que elas têm um aspecto pedagógico, de trazer questões da sociedade e conscientizar as pessoas?
Têm. Se não tivessem, não teriam audiência. O folhetim comporta, às vezes de forma até romântica, a ambição de uma justiça social, a necessidade do amor na vida das pessoas, atos generosos de ser humano para ser humano. E, no fim, o bandido da história é sempre castigado. Mesmo que na vida real isso não aconteça. Na novela, isso tem de acontecer. E, quando o bandidaço consegue sair vivo da situação, há subliminarmente uma ideia de que aquilo é uma aberração. Embora o bandido tenha saído de avião, fazendo sinal de banana, é uma aberração. Por isso, não é só aqui que faz sucesso, mas também em outros países.
É uma tradição que remonta aos folhetins do século 19, publicados em jornais.
Mas é anterior ao século 19. Está na tragédia grega. Clitemnestra mata Agemenon porque ele sacrificou Ifigênia aos deuses para ganhar a Guerra de Troia. Se isso não é um folhetim imenso...
Dizem que nosso corpo envelhece, mas a cabeça segue como se estivesse jovem, ativa. a senhora se sente dessa forma?
Meu filho, os anos sempre trazem uma debilidade (risos). Por que alguns ainda resistem? Não tenho explicação. É uma herança, sei lá, celular. É engraçado, porque no teatro sempre conheci atores idosos muito presentes, que têm uma visão da vida bastante clara, aguda e, dependendo dos seus estilos particulares, até com generosidade. A nossa profissão de ator é uma profissão que te mantém em pé.
Sua fotobiografia tem uma página dedicada à memória de Eva Sopher, que dirigiu o Theatro São Pedro, em Porto Alegre, e morreu no início deste ano. A senhora poderia relembrar como era sua relação com ela?
Foi uma ativista cultural e educacional por excelência. É inegável. Esse teatro, que está em pé, é uma joia de vivência e resistência no país. Porque a Eva não era só cultuada, lembrada e amada no Rio Grande. Todos nós tivemos e temos essa casa em Porto Alegre graças a essa mulher severa, obstinada, sagrada. Enquanto teve forças para andar, falar e agir, esse teatro esteve de pé. Espero que continue. Espero que quem esteja à frente dele honre a figura da Eva.
Viajo com muito carinho por esse Brasil. Amo o Brasil despudo-radamente.
FERNANDA MONTENEGRO
Atriz
Também no livro a senhora escreve sobre a admiração pelo diretor teatral Antunes Filho: "Íamos mudar o mundo". A senhora julga que cumpriu essa missão?
Romanticamente, vamos dizer que quase (risos). Tenho em Antunes um irmão. Um irmão de sonhos e de viagem numa área de ação votiva. É uma área de trabalho e de criação que não pode ser apenas para passar por ali. É uma ação sempre votiva.
Quero lhe fazer uma provocação que a senhora fez a Ariano Suassuna em 2007: "Eu queria que você falasse sobre a dor e o prazer de não morrer aos 40, nem aos 50, nem aos 60, nem aos 70, nem aos 80...".
Eu amo a vida. Agradeço a natureza, aos meus pais, aos meus antepassados. Agradeço aos deuses que me puseram nesse palco. E agradeço a Deus por estar de pé. Ainda falo, ando, raciocino, trabalho. Ainda sou independente, como sempre fui na vida. Vejo meus netos crescerem, indo para faculdades. Viajo com muito carinho por esse Brasil. Amo o Brasil despudoradamente. Despudoradamente.
Além da sua autobiografia, em que outros projetos está envolvida?
De imediato, estou me preparando para fazer um filme com direção de Vicente Amorim, que devo rodar parte no Brasil e parte na Itália, em fevereiro (Duetto, que também contará com Claudia Cardinale). E tenho o projeto de continuar lendo Nelson (Rodrigues) pelo Brasil. Passei a ler porque não conseguia um ator com hora livre para fazer. Comecei a ler e vi que as pessoas não iam embora, ficavam assistindo. Por conseguinte, isso começou a virar um projeto real. Tem convite do Brasil inteiro para fazer essa leitura, que eu diria que é uma leitura familiar. Eu via minha mãe ler os folhetins do Rio de Janeiro para as primas, tias e avó em torno de uma mesa. As meninas todas sentadas, e mamãe lendo o último capítulo do folhetim que chegava de um vendedor que ia de porta em porta. Quando você não tem uma envergadura organizada de cultura, de educação, por onde podemos ir? Pode-se ir até por leituras. Se você não pode montar um Shakespeare, leia Shakespeare. E também leia romances, contos. Pegue a literatura e leia.
A senhora gostaria de acrescentar algum comentário?
O Rio Grande é um Estado que, na minha história e no mundo do teatro, sempre tem uma plateia muito preparada, envolvida, presente, aderente. Agradeço muito ao gaúcho por isso. Conheço bem esse Estado.