Santa-mariense, a psicóloga Débora Noal, 37 anos, é de todo lugar. Membro da organização internacional Médicos Sem Fronteiras, que socorre populações afetadas por desastres naturais, epidemias, desnutrição severa e conflitos armados, ela atendeu, durante anos, a chamados para partir de imediato rumo a países como Haiti, Guiné, República Democrática do Congo e Líbia.
Sob risco permanente e péssimas condições de sobrevivência, desabafou em textos que deram origem ao livro O Humano do Mundo – Diário de uma Psicóloga Sem Fronteiras (Astral Cultural, 256 páginas, R$ 44,90).
– Costumo dizer que estou com pouco mais de cem anos (risos). O corpo talvez não aparente tanto o quanto eu sinto, mas é impressionante. A sensação é de nunca voltar no mesmo corpo, é de voltar outra pessoa. Uma sensação boa, até, por incrível que pareça, de ter vivido várias vidas em uma só – descreve a autora, hoje morando em Brasília.
É interessante a história da sua primeira convocação para uma missão com os Médicos Sem Fronteiras (MSF), no Haiti, em 2008. Você deixou tudo para trás – os móveis nos corredores do prédio, os vasos de plantas no saguão, a gata com a vizinha –, abandonou o emprego e o mestrado. Como se sentiu?
Eu tinha tanta vontade de encontrar o humano do mundo, de ver como as pessoas viviam e produziam sentido nas suas vidas em outros lugares e como eu conseguiria ajudar com aquilo que eu me propus a fazer na vida, que é ser psicóloga. Na hora que veio o telefonema da MSF dizendo “Débora, encontramos a sua missão”, a sensação que eu tinha era de que o Réveillon de Copacabana estava acontecendo dentro de mim, eram fogos de artifício. Senti uma alegria que eu não lembro de outras vezes ter sentido, tamanha a intensidade e a sensação de estar plena. Fiquei tão empolgada que não me passou pela cabeça que seria uma coisa difícil. Meu foco não estava no que ficaria, mas no que eu iria encontrar. Isso sempre foi uma coisa importante, ter pequenas sensações de plenitude, pequenas pílulas de felicidade a cada dia. Era uma sensação tão boa que era difícil de explicar. Mas não me passava pela cabeça uma coisa difícil, algo complicado, uma coisa ruim ter que deixar coisas materiais.
Além de ter de fazer renúncias importantes, o que mais é preciso para trabalhar nessas missões?
Um dos pontos-chave é ter muita curiosidade pelas pessoas, tentar entender, não partir do princípio de que você já sabe ou de que já tem uma ideia, ou que já estudou, ou que já leu, ou que já sabe. Você vai ter que aprender a ler o mundo e a ler você mesmo nessas circunstâncias. A cada vez que recebo um chamado, tenho que reconfigurar minha forma de ser, repensar como estou vivendo no momento e em como me proponho a viver daqui para a frente. Mesmo que eu já tenha vivenciado situações de terremoto, de epidemia de ebola, de conflito armado, a cada momento que o chamado chega é preciso revisitar: que vida é essa que estou vivendo neste momento e como me proponho a reinventá-la? E não partir do princípio de que já sei o que fazer comigo e com o outro. Não, eu vou ter que reaprender. Cada cultura é diferente, cada país é diferente, cada expressão de sofrimento é diferente. A forma de lidar nunca é o que vou dizer para as pessoas, mas como vou, de alguma forma, tentar ler quais eram as evidências de alegria, felicidade, conforto e cuidado daquela população que estou me propondo a cuidar, como eles viam isso antes do desastre.
Você trabalha com a linguagem, e no começo não falava francês direito. O idioma foi uma barreira, apesar de as pessoas se expressarem também de outras formas?
Na maior parte dos lugares onde trabalhamos, usamos francês, inglês, espanhol ou português só para conseguir fazer a comunicação com os tradutores, porque normalmente as línguas que se falam nesses países são lingala, bangala, suaíli, crioulo. Não são línguas que a gente domina com muita facilidade. Quando cheguei ao Haiti, fiz um curso de crioulo, como fiz de lingala no Congo, como fiz de suaíli, como fiz de russo... Mas a maior parte das populações que a gente cuida não domina os idiomas mais globalizados. Boa parte dessas culturas não utiliza a fala como a maior expressão de comunicação. Então, talvez tenha sido mesmo um dos maiores aprendizados como psicóloga: como fazer escuta com os cinco sentidos. Como usar o olfato, o tato, a visão. Na maior parte dessas culturas, às vezes, a única forma de escutar é não usar os ouvidos. Talvez eu tenha deslocado os ouvidos para outros lugares.
“Trabalhar aqui é um exercício constante de criar utopias”, você escreveu no Haiti. Era isso que a movia?
Acredito que sim. Tem uma frase do Galeano (Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio) de que gosto muito: a utopia está lá no horizonte, eu caminho 10 passos e ela se afasta 10 passos, e assim ele vai indo. Por mais que eu caminhe, que eu persiga, nunca alcanço, mas é para isso que ela serve, para caminhar. Se a gente olha para todos os lados e pensa “o que eu vou fazer com isso tudo?”, talvez fique paralisado, porque é muita coisa para fazer. Pessoas com desnutrição severa, sem saneamento básico, sem água potável, sem luz... A maior parte das mulheres de que cuido foi violentada sexualmente mais de uma vez, às vezes desde criança até a vida adulta. Se eu pensar que preciso dar conta disso tudo, provavelmente vou ficar paralisada ou ter vontade de voltar porque vou ver que não dou conta. Então tenho de inventar pequenas utopias, cada dia pensar o que posso fazer a partir disso que estou vendo e valorizar cada pequena conquista. Às vezes, é fazer com que as pessoas consigam dormir uma noite inteira sem ter medo, às vezes é encontrar um filho que está perdido.
Quando você está no limite extremo de viver ou morrer, ressignifica todo o seu processo de vida. Cada missão é ter que ressignificar quem você é, mas junto com aquelas pessoas, porque você também está numa situação limite"
DÉBORA NOAL
Psicóloga
Medo de ser violentada, de se perder na mata fechada, cansaço, dor etc. eram constantes no seu dia a dia.
O livro não era para ser um livro, são os meus diários. Era uma caixinha de fragilidades, tudo aquilo que eu nunca queria ter dito para ninguém, uma coisa só minha. Escrevo como uma forma de autocuidado, quando preciso elaborar algo. Demorei para publicar, foram quase cinco anos para entregar os manuscritos. Na República Democrática do Congo, um dia tinha escutado dos meus pacientes que naquela noite, provavelmente, a nossa base seria atacada. Um lugar que não tinha porta, não tinha grade, nenhum bunker de esconderijo... Escrever era o meu jeito de dizer que, sim, eu estava com muito medo. E não era um medo imaginário, era um medo real de algo muito perverso. Algumas mulheres de quem cuidei ficaram anos sequestradas sendo violentadas coletivamente por homens dos grupos armados. Sabia que, se eles entrassem na nossa base, a minha história seria muito parecida com a delas. Não sabia se teria a mesma força, a mesma coragem e a mesma destreza delas para querer reinventar a vida. Elas dizem: “Me ajuda a esquecer” ou “Me ajuda a inventar uma nova forma de viver”. Isso, para mim, sempre foi de uma beleza incrível: alguém quer e pede ajuda, “me ajuda a viver, a reinventar um novo projeto de vida porque perdi tudo, perdi todos os meus filhos, perdi meu marido, perdi meus pais, perdi os vizinhos”. É impressionante.
A história da Marie parece ter sido uma das mais marcantes das suas andanças.
Sim. Ela chegou depois de meses caminhando na floresta. Os pés estavam em carne viva. Ela não tinha mais sapatos, tinha uns farrapos de roupa e um bebezinho amarrado no corpo. Isso foi em Niangara, na República Democrática do Congo. Ela tinha seis filhos e, antes de me encontrar, foi perdendo cada um deles. A história começou quando uma vizinha disse: “Marie, corre, corre. Volta para casa. Acabaram de matar o seu marido na estrada e eles vão chegar a nossa cidade”. Ela saiu correndo, desesperada, e tentou reunir os filhos todos e fugir para a floresta. Saiu sem nada. Quando ela contou, viu que não eram seis, mas só cinco. Tinha esquecido uma filha. Ela voltou e encontrou uma cena que ninguém deveria enfrentar: a filha queimando com a casa. Ainda que desesperada, tentou voltar à razão e fugiu com os filhos para um povoado onde morava a mãe dela. Lá, eles foram de novo atacados por um grupo armado. Marie foi violentada sexualmente e perdeu filhas para os sequestradores. A cada novo lugar, de novo ela encontrava a violência e ia perdendo os filhos. Provavelmente muitas pessoas não quisessem mais viver, mas ela queria que eu a ajudasse a criar um novo projeto de vida. O mais bonito foi voltar lá anos depois e reencontrá-la, reinventando a vida, melhor.
Você já tinha experiência com mulheres vítimas de violência antes de se integrar aos MSF, mas, nas missões, deparou com situações de absoluto horror. Como lidava com isso tudo?Infelizmente, não era um caso por dia. Dependendo do dia, eram dezenas. Dependendo do dia, eram centenas. Tinha dias em que não havia condições de fazer atendimento individual. Era muito impressionante, eu nunca tinha tido contato com uma mulher com fístula. Muitas delas são estupradas, às vezes, por 30 ou 40 homens, com objetos, com armas... Então o canal da vagina e do ânus se transforma num só. Para a gente que tem um mínimo de empatia e proximidade com o cuidado humano, acaba sentindo no corpo. E o corpo, quando você imagina e sente, ele não sabe que aquilo ali não foi com você. Você acaba adquirindo uma série de dores que não eram suas até então. A partir do momento em que uma história é dividida e que você a escuta com todos os sentidos, aquela história também é sua.
Na sua descrição, esse trabalho “é como estar no globo da morte, em um circo de baixo orçamento: é vital rodar em todos os sentidos. Parar ali pode ser o fim”. Como é trabalhar em condições tão precárias – passar 15 horas sem se alimentar, comer banana seca frita no azeite de dendê por dias, tomar banho de caneca ou de pingos sem sabonete, fazer as necessidades em fossas, não ter papel higiênico, escolher uma mão para se limpar e outra para comer – e, o pior, arriscando a própria vida?
Quem inventou o papel higiênico deveria ganhar o Prêmio Nobel da Paz, porque é tranquilizador saber que papel higiênico existe! O mais cansativo e desgastante em uma missão é aquilo que é invisível: aquele cheiro forte de urina e fezes por tudo porque não existem banheiros e latrinas, aquele calor úmido que parece que você está numa panela de pressão, o risco de escutar bomba e rajadas de metralhadora, os barulhos da floresta. Você tem que reaprender a viver. É muito cansativo porque você dormiu mal, não tinha um colchão fofinho, e até hoje padeço de dores de coluna. Mas, por mais que isso tudo pareça aniquilador, quando termina dá uma sensação boa: estou viva e posso escolher estar nesse lugar ou não estar. Ter a possibilidade de escolha é fantástico, libertador, mas dá uma sensação pesada: eu estou indo, e essas pessoas que estou deixando não têm essa liberdade. Isso talvez seja o mais aniquilador, porque eu sei que o dia que sair de lá vou ter chuveiro, papel higiênico, vaso sanitário – que é libertador também. Garfo e faca para comer! Um prato limpo, para você não precisar ficar limpando na roupa o prato em que outra pessoa já comeu porque não tem prato para todo mundo.
Os cheiros eram muito marcantes nas suas viagens.
Não sou uma pessoa com o olfato muito bom, pelo menos não achei que era. Mas, depois que fui aprendendo a escutar com os outros sentidos do corpo, fui me dando conta do quanto o olfato traz não só uma memória afetiva, mas uma memória de processo de cuidado, como é que você cuida de acordo com os cheiros. Me lembro direitinho daquele cheiro agridoce da morte quando teve o terremoto do Haiti. O cheiro do sangue, da hemorragia, dos pedaços de carne humana se decompondo... Consigo sentir com detalhes os cheiros, inclusive o cheiro do medo. As pessoas que sentem muito medo cheiram de outra forma. E o cheiro do medo humano no Congo não é o mesmo cheiro de medo no Brasil e talvez não seja o mesmo no Haiti. E fiquei também muito mais condescendente com os cheiros humanos. Quando alguém me diz “ai, aquela pessoa está cheirando mal”, eu digo “não, está cheirando a ser humano”. O ser humano cheira mal, a gente cheira muito mal (risos).
Talvez seja impossível citar a lembrança mais marcante de todas essas missões, mas gostaria que você tentasse escolher uma. O que não a largou jamais, o que grudou para sempre?
Todas as missões marcam, assinalam você visceralmente. São cicatrizes, são coisas que aconteceram, são marcas no corpo e no sentimento, mas não são marcas ruins, por mais doídas que sejam. É difícil escolher uma só, representativa do todo... As histórias de mulheres são as que mais me marcam. Escuto tudo, homem, mulher, criança, mas as mulheres me parecem de uma força diferente. Elas têm filhos das violências sexuais, às vezes têm uma família inteira formada só por violência. Em Masisi, no Congo, a estimativa é de que de 80% a 90% das mulheres já tenham sido violentadas. Enquanto a gente está aqui conversando, enquanto as pessoas estiverem lendo o jornal, mais centenas dessas meninas ou mulheres vão estar sendo violentadas de uma forma que a gente talvez nunca consiga nem imaginar. O seu destino e a sua história estão marcados pela violência desde que você nasce... Acompanho partos de mulheres violentadas, que normalmente não têm mais companheiro ou, quando tinham marido e filhos, foram obrigadas a abandonar porque a comunidade não permite que elas vivam mais lá, e o direito dos filhos é do pai, mesmo que tenha sido a mãe que cuidou o tempo todo. Não é só no Congo, é em vários lugares. São países que me marcaram muito. As populações são muito doces, pedem carinho, “cuida de mim”. Como é que você diz “está na hora de ir embora” para eles?
O desligamento é doído, né?
É muito doído porque você está deixando gente de casa, né? Quando você está no limite extremo de viver ou morrer, você ressignifica todo o seu processo de vida. Cada missão é ter que ressignificar quem você é, mas junto com aquelas pessoas, porque você também está numa situação limite. Talvez não tão desesperadora quanto elas, porque você tem uma perspectiva, que pode ser inclusive fantasiosa, você pode nunca mais voltar para casa, mas você tem pelo menos uma sensação de esperança, e que naquele momento às vezes é tudo. A sensação de liberdade, de esperança, de que você é capaz de planejar a sua vida às vezes é tudo que uma pessoa tem. Imagina você não ter nem isso.