Volta e meia, o mundo acorda para uma tragédia esquecida: na Ásia, na África ou nos quintais da Europa rica. No caso dos rohingya, um povo errante, sem pátria, que foi corrido de Mianmar para Bangladesh, o planeta pouco se preocupou.
Desde que o exército birmanês deflagrou uma operação que resultou em êxodo de milhares de pessoas, a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a definir a tragédia na Ásia como "limpeza étnica". Mais de 600 mil refugiados se aglomeraram na fronteira, no lado de Bangladesh, gerando uma crise humanitária agravada por uma epidemia de difteria.
Foi para lá que rumou, em dezembro, o gaúcho Guillermo Gutierrez, 29 anos, morador do bairro Itu-Sabará, em Porto Alegre, e funcionário da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF).
Natural de Porto Alegre, filho de mãe brasileira e de pai uruguaio, o jovem formou-se em Relações Internacionais na ESPM. Mas foi enquanto dava aulas de espanhol na Finlândia que descobriu, por meio de um podcast, que poderia ajudar a amenizar os dramas do mundo. Não é médico, mas a ONG não é só formada por médicos: precisa de quem trabalhe na logística, negocie com governos muitas vezes autoritários para fazer chegar a quem sofre carregamentos de remédios.
Desde que ingressou na MSF, em 2016, Guillermo trabalhou na Jordânia, auxiliando o envio de medicamentos para a Síria, depois auxiliou em missões em Guiné-Bissau e Angola. Em dezembro, embarcou para o maior desafio: ajudar a combater a difteria nos megacampos de refugiados rohingya em Bangladesh, de onde voltou há poucas semanas. Ele contou a experiência à coluna:
"Compro desde morfina até papel higiênico"
Entrei no Médicos Sem Fronteiras em maio de 2016. Não sabia que aceitavam pessoas que não eram da área médica. Estava na Finlândia, dando aulas de espanhol. Escutava um podcast, no qual um psiquiatra, ao final do programa, informou que também aceitavam pessoas para as áreas de logística, para montar hospitais, e para a parte administrativa. Voltei para o Brasil, fiquei desempregado, a economia aqui não estava das melhores. Fiz a inscrição e, duas semanas depois, estava dentro. Um mês depois, estava na primeira missão: Jordânia. Trabalhei com a crise na Síria. A gente não entra, é tudo remoto, então eu trabalho com suporte, faço a compra dos materiais que a gente vai usar em terreno e também em nossas casas. Compro desde a morfina para uma cirurgia difícil até papel higiênico que a gente usa em casa. Depois, fui para Guiné-Bissau, onde fiquei nove meses, mais focado em pediatria e em ajudar na profilaxia da malária. Em Angola, trabalhei com refugiados congoleses, na região de Dundo. Em dezembro, fui para Bangladesh, trabalhar na grande crise de refugiados de Mianmar.
"Não adianta dar medicamento e a pessoa tomar água contaminada"
A gente sabia que, em algum momento, iam enviar a gente para lá. Eu estava na Espanha quando explodiu o surto de difteria. Em Mianmar, eles não têm documentos, não têm identidade, não são reconhecidos. São um povo sem pátria. Tu imaginas, "vais ser refugiado, mas com que documento tu vais dar entrada em outro país?". Eles chegam a Bangladesh e não têm status de refugiado porque não têm pátria. É um povo que está sofrendo há muito tempo. Não vieram agora. A primeira onda foi nos anos 1970, um número reduzido, 60 mil. Nos anos 1990, houve nova onda, 100 mil. E agora essa onda é de 600 mil a 700 mil. Já havia campos de refugiados na parte central de Kox's Bazar. Quando deu esse novo fluxo de gente, esses campos, eram pequenos, começaram a se grudar uns nos outros. Eram três campos que viraram um megacampo. Quando cheguei lá, fiquei primeiro em Daca, para receber medicamentos de fora e enviar para nossa equipe nos campos. Liberei 30 toneladas de medicamentos, fora equipamentos sofisticados, como bombas de água. A gente está desenvolvendo poços artesianos para que as pessoas tenham acesso à água. Não adianta dar medicamento contra a difteria, e a pessoa tomar água contaminada.
"Viram coisas que nenhuma criança deveria ver"
A primeira coisa que me impactou foi o tamanho dos campos. É uma imensidão de pequenas tendas. Uma família de 20 pessoas em uma tenda do tamanho de uma sala. Criança é criança. Elas fogem (da guerra) mas tu as vê ainda jogando bola, brincando. A criança mantém a inocência, o que é superbonito. Mas há crianças que tiveram de crescer muito rápido porque a onda de violência as atacou. Viram coisas que nenhuma criança deveria ver. Mas eles estão lá porque não têm outro lugar para ir. Conversei com um senhor que contou que, nos anos 1970, teve alguns problemas mas conseguiu ficar (em Mianmar). Nos 1990, também. Mas, desta vez, não teve como, e ele teve de vir para Bangladesh. Em Mianmar, por mais que não tivesse direito a tudo, ele tinha casa dele, as coisas dele. Ele ia para um lugar onde perderia muitas coisas. Para ele, era muito difícil fugir.
"O pouco que se dá, para eles, significa muito"
Bangladesh é um país menor do que o Uruguai, com 160 milhões de pessoas. Não está em condições de receber mais 1 milhão. O governo dá auxílio, mas falta muito a coisa. Teve alguns casos interessantes. Depois que a difteria estava controlada, deixamos apenas um hospital. Havia uma criancinha que teve o corpo queimado, era um caso bem grave. Lá, eles não têm gás. Para cozinhar, fazem um buraco no chão, botam carvão e colocam fogo. A criança não vê o buraco e cai. A mãe dessa criança estava lá e disse: "Eu não quero sair do hospital, aqui tem três enfermeiras cuidando do meu filho". A gente está dando o que eles nunca tiveram. O pouco que se dá, para eles, significa muito.
"Com o tempo tu vais ficando calejado"
Sou chorão. Mas, com o tempo, tu vais ficando calejado. Em Guiné-Bissau, vi um menino, um bebezinho, com problemas cardíacos. Eu pensei: "Vou sair daqui porque vou começar a chorar". Mexe contigo, mas uma pessoa chorando não vai ajudar ninguém. O pessoal médico está fazendo o trabalho deles da melhor forma possível, e eu estou ali para dar suporte. No início, tu ficas mais mexido, depois vai criando uma resistência.
"A situação nos campos tende a piorar"
Os governos de Mianmar e de Bangladesh firmaram um acordo no qual se dão dois anos para solucionar o retorno dos rohingya. Mas ainda há refugiados cruzando a fronteira. A situação não está própria para eles voltarem. Eles chegaram em uma época que fazia calor (40ºC), depois, quando a gente chegou estava frio de 5ºC. Agora, vai começar a temporada de chuvas, as monções. A situação nos campos tende a piorar. Lá não é chuva de verão, é bem agressiva. Há tendas em montanhas de terra seca. Se começar a chover, aquilo vai deslizar.