A obstetriz (enfermeira obstétrica) brasileira Andreza Trajano, formada pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou durante 10 meses na clínica mantida pela ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Kutupalong, Bangladesh. Antes, ela havia atuado com MSF no Afeganistão. Nesta entrevista, ela narra como foi o contato com os refugiados de Mianmar, especialmente com mulheres rohingyas vítimas de abuso sexual.
Você conhecia a realidade dos refugiados rohingyas antes de embarcar para Bangladesh?
Fui para lá em setembro do ano passado e voltei em 31 de agosto. Sabia que MSF tinha projetos lá, mas não tinha conhecimento sobre rohingyas. A clínica em Kutupalong é básica, não fazíamos cirurgias. Fica em frente ao campo de refugiados, que tinha em torno de 45 mil a 50 mil pessoas em setembro, quando as coisas estavam relativamente calmas. Em três meses, esse número saltou para quase 85 mil, levando à criação de outro campo.
Os pacientes informavam as equipes sobre o que estava acontecendo em Mianmar?
Sim. Todos contavam sempre as mesmas coisas. Muitas gestantes ficavam retidas, não podiam atravessar a fronteira. Havia muitos casos de óbito fetal e de violência sexual, difíceis de lidar.
Havia muitos casos de óbito fetal e de violência sexual, difíceis de lidar.
Andreza Trajano
Brasileira que trabalhou em Bangladesh
Você saiu de Bangladesh antes do mais recente influxo de refugiados. Alguma coisa indicava o que ocorreria?
Sim. Saí em 26 de agosto, e no dia anterior recebemos os primeiros pacientes dessa nova leva. Até abril, tínhamos recebido muitas vítimas de abuso sexual.
O que elas diziam?
O que posso falar é o que relatavam para nós. Diziam que os militares vinham, queimavam as vilas e abusavam delas. Em outubro, o relato era sempre o mesmo (reproduz os testemunhos das vítimas): "Minha casa foi queimada, minha vila foi queimada, meu marido foi assassinado. Minha mãe e eu fomos estupradas na frente de nossos familiares. Estou aqui sem saber onde está minha mãe, onde está meu irmão porque atravessamos em barcos separados".
O movimento se mantinha constante?
Entre outubro e janeiro, foi o período mais intenso. Os médicos e as equipes do pronto-socorro pararam de atender vítimas. Casos de queimaduras e ferimentos por armas pararam de ser encaminhados a eles. Até maio houve muitas vítimas de violência sexual. Entre maio e agosto, pareceu haver uma calmaria.
Diziam que os militares vinham, queimavam as vilas e abusavam delas.
Andreza Trajano
Brasileira que trabalhou em Bangladesh
Você se recorda de algum caso específico?
Foram tantas meninas vítimas de violência. Houve uma de 13 anos que veio com outras mulheres que tinham acabado de cruzar a fronteira. Uma das adultas disse que tinha sofrido abuso na vila dela. A de 13 anos estava junto com a mãe, a tia e a irmã. Relatou que tinha sido abusada, que a tia e a mãe sabiam porque haviam presenciado tudo. Não sabia onde estava o irmão pequeno. Chamamos um psicólogo de Bangladesh, que se recordou de um menino que havia ingressado no campo. Verificou o nome, e se descobriu que era o irmão dela.
Qual é a situação do campo de refugiados?
Quando cheguei lá, atendíamos 300 pessoas por dia, e hoje atendemos 3 mil. Com 530 mil pessoas num lugar que não tem banheiro nem água potável, fica muito difícil e perigoso. Têm acontecido mortes por desnutrição. A época das chuvas já passou, mas infelizmente a chuva continua. O campo é cercado de arrozais, o solo é enlamaçado. As barracas têm tetos de plástico, e embaixo é lama. Há casos de pneumonia, pelo que soube. O inverno está chegando. Ainda há muito calor em outubro e novembro, mas, durante o inverno, as temperaturas chegam a 12ºC.