O depoimento da jovem de 25 anos recolhido por integrantes da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Bangladesh deixa pouca margem a dúvidas sobre a sorte da minoria muçulmana conhecida como rohingya no vizinho Estado de Mianmar, a antiga Birmânia, no sul da Ásia.
"Os militares nos atacaram na quarta-feira (30 de agosto), eram mais de 150. Antes disso, o mogh ukhatta (líder da aldeia) ordenou que nos reuníssemos às margens do canal da aldeia. Todos nos reunimos ali. Eles (os militares) estavam armados, então não podíamos fazer nada. Começaram a matar os homens na nossa frente. Colocaram os cadáveres em um dique e os queimaram. Então os militares levaram grupos de mulheres para o interior das casas e nos golpearam com machados. Um me atingiu perto da vagina. Outro acertou minha garganta. Eu estava segurando meu bebê de 28 dias no colo. Atingiram meu bebê com alguma coisa pesada. O objeto bateu na cabeça, e o bebê morreu. Vi como seu crânio se abriu e seu cérebro saiu. Consegui chegar aqui, mas não sei para onde vou depois de receber alta. Não tenho nada, apenas as roupas do corpo. Não conheço ninguém, e meu bebê está morto. Tento não pensar nisso, mas é demais para mim".
Os rohingyas são uma minoria muçulmana em Mianmar, ex-colônia britânica de população majoritariamente budista. Acredita-se que descendam de mercadores árabes que, nos tempos medievais, construíram redes de comércio por todo o Oceano Índico. Estimativas sugerem que existam mais de 1 milhão de rohingyas em Mianmar, que não lhes concede cidadania, uma vez que são considerados migrantes ilegais de Bangladesh. A discriminação escancarada contra esses indivíduos não vem apenas do Estado birmanês: uma vertente budista ultranacionalista, que ganhou peso após o fim da ditadura militar, em 2011, defende a aniquilação pura e simples dos muçulmanos. O líder dessa facção é o Venerável (Ashin) Wirathu, monge de 49 anos, que iniciou uma campanha contra os rohingyas no Estado de Rakhine, palco da maioria das atrocidades. A autora do relato reproduzido no início desta reportagem é natural de Rakhine. Em janeiro, quando Wirathu louvou a morte de um advogado muçulmano, o governo birmanês proibiu-o de pregar.
Em um ano, atendimentos de MSF quintuplicaram
A violência contra os rohingyas acentuou-se desde 2011. No ano seguinte, pogroms consumados em aldeias deixaram milhares de mortos e deslocaram mais de 100 mil pessoas. A perseguição atingiu novo patamar no final de agosto. Desde o dia 25, mais de 600 mil rohingyas fugiram de Mianmar em direção a Bangladesh. Responsável por prestação de serviços médicos na região bengali de Cox's Bazar desde 1985, Médicos Sem Fronteiras atendeu mais de 30 mil pessoas desde o aprofundamento da crise, em agosto.
O número é cinco vezes maior do que o do ano passado. A presidente da organização, Joanne Liu, soou o alarme na segunda-feira:
— Para Bangladesh, receber mais de meio milhão de pessoas é uma atitude tremendamente generosa, mas que vem com enormes desafios. Nenhum país do mundo pode atender necessidades tão grandes sozinho. Pedimos ao governo de Bangladesh que mantenha suas fronteiras abertas e à comunidade internacional que apoie esse gesto generoso.
Lentamente, o genocídio dos rohingyas começa a chamar atenção das potências. Na quinta-
feira, pela primeira vez, os Estados Unidos fizeram um gesto concreto para deter a violência: em telefonema ao chefe do Exército birmanês, Min Aung Hlaing, o secretário de Estado, Rex Tillerson, pediu que as forças de segurança "apoiem o governo" na tentativa de acabar com a violência.
Mianmar permite entrega de comida
O governo de Mianmar decidiu na sexta-feira permitir que a Organização das Nações Unidas (ONU) entregue comida na região norte do Estado de Rakhine, onde vive a etnia rohingya.
A organização tinha suspendido a distribuição de alimentos havia dois meses, alegando que seus funcionários não conseguiam acesso à região. A porção central do Estado seguiu recebendo o auxílio humanitário, conforme a ONU.
O Unicef, braço das Nações Unidas para a infância, declarou na sexta-feira que as crianças rohingyas refugiadas chegam a Bangladesh "perto da morte" por falta de alimento. Segundo a organização, mais de 500 mil refugiados alcançaram o país vizinho nas últimas semanas.
A ONU diz que fornecia alimentos para cerca de 110 mil habitantes do norte de Rakhine, onde também vivem budistas.
Há pouco mais de um mês, a ONU denunciou uma "limpeza étnica" contra a minoria muçulmana. No dia 25 de agosto, rebeldes rohingyas atacaram cerca de 20 delegacias de polícia no Estado de Rakhine, no oeste do país, onde se concentram. Desde esse incidente, o Exército birmanês tem conduzido o que chamou de "operações de limpeza" com o objetivo de deter "terroristas extremistas" e proteger a população civil.