Samuel Johann guarda uma recordação vívida do momento mais emocionante de seus dois anos como logístico da Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização não governamental com atuação em 28 países. Foi em março de 2015, em Conacri, capital da Guiné, no final da epidemia de Ebola, vírus que vitimou 26,8 mil pessoas e provocou 11 mil mortes na África Ocidental e em outros países em quase três anos.
Dedicado à área de recursos humanos, Johann trabalhava num pequeno escritório anexo ao hospital, mas passava boa parte do tempo em contato com os profissionais de saúde. O gaúcho nascido em Lajeado, então com 28 anos, estreava num momento delicado como voluntário de uma ONG no Exterior.
– Foi minha porta de entrada, tudo me impressionava. Foi a primeira vez que vi uma ONG em ação – revela.
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Um dos detalhes que Johann reteve na memória foram os protocolos de biossegurança adotados em Conacri. Em razão da extrema viralidade do Ebola, que havia sido detectado em maio de 2014 na cidade, o MSF adotava na região um procedimento batizado de "política de não tocar" (no touch policy). O protocolo exigia que os trabalhadores do projeto não tocassem em ninguém durante a missão.
– Foram três meses sem poder encostar. Há um efeito cumulativo nesses casos. Você faz amigos. Na África Subsaariana, as pessoas são muito calorosas. É uma cultura que favorece o toque. Você sente vontade de apertar a mão, como se fosse selar a amizade.
No centro de tratamento, havia uma zona de baixo risco, à qual Johann tinha acesso, e uma de alto risco. Mesmo na de baixo risco, trabalhadores precisavam trocar a roupa por outra, desinfetada conforme os padrões da MSF, incluindo luvas e botas. O brasileiro não chegou a usar luvas nos três meses passados em Conacri.
Formado em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Taquari (Univates) em 2012, o lajeadense sentia-se desconfortável com as primeiras experiências profissionais. Descobriu aos poucos que buscava uma atividade de cunho social e, em seguida, passou a buscar oportunidades em ONGs, especialmente pela internet. Ele recorda:
– Quando encontrei a MSF, fiquei surpreso ao descobrir que não era uma organização somente para profissionais de saúde. Há uma série de necessidades não médicas para viabilizar as operações da organização. Minha caminhada, por exemplo, seguiu por administração e logística.
Johann fez contato com o setor de recrutamento da MSF no final de 2014 e, nos primeiros meses do ano seguinte, participou de um processo seletivo. Em março, aterrissou em Conacri. Na estrutura da organização, era um expatriado. O termo é utilizado para designar os trabalhadores estrangeiros da ONG. Nisso, outra surpresa: normalmente, a MSF emprega muito mais nacionais do que expatriados. Apesar da conotação negativa do termo, Johann diz que a organização tem uma política consistente para integrar funcionários independentemente de nacionalidade.
– O respeito à cultura e a empatia são muito trabalhados para que possamos nos sentir à vontade. Afinal, você vai a lugares que não são sua casa, no terreno dos outros, inserido numa cultura que não é a sua – relata.
E acrescenta:
– Somos incentivados a exercitar essa empatia, esse estudo dos costumes locais. Essa é a realidade em relação à equipe nacional, mas também em relação a outros expatriados.
Na Guiné, Johann descobriu que atividades de apoio, que poderiam parecer simples à distância, eram cercadas de uma infinidade de dificuldades práticas.
– No Brasil, a gente encara tudo como garantido. No contexto em que trabalhamos, porém, nada está assegurado. É preciso garantir, por exemplo, que haja água potável e tratamento de resíduos em nossos hospitais. E, normalmente, temos de viabilizar isso em contextos de extrema carência.
Segundo o gaúcho, as iniciativas da MSF organizam-se em torno de projetos. Esses, por sua vez, são desencadeados a partir da identificação de uma necessidade específica da população local.
Ao final de um contrato de três meses, Johann voltou ao Brasil. No Rio, passou por um período de 21 dias de observação. Não era uma quarentena, e sim o que define como "período de observação", monitorado pela equipe médica por telefone.
– Você tem de ficar mais isolado e muito atento. É orientado a prestar atenção no próprio corpo, tirar temperatura. O Ebola só se torna contagioso no momento em que se manifestam os sintomas da doença – relata.
Johann afirma que, em virtude da maneira como a ONG lida com os funcionários, não passou por dificuldades de ordem psicológica durante as missões:
– Desde o momento em que você aceita participar de um determinado projeto, eles vão esclarecer questões de segurança, saúde, bens e biossegurança. Isso tem por objetivo tranquilizar o expatriado. Você sente que está sendo cuidado, e não jogado. Também recebemos suporte psicossocial. Você dispõe de um telefone para ter a quem recorrer. Existe uma estrutura para que você possa lidar com estresse e minimizar risco.
Nos quatro projetos da MSF de que participou (depois da Guiné, foi a Moçambique, Sudão do Sul e Nigéria), o jovem manteve-se em contato permanente com familiares e amigos. No Sudão do Sul, por exemplo, o projeto estava localizado no interior de um pântano, e a ONG instalou internet via satélite para uso da equipe.
Depois da Guiné, Johann passou cinco meses em Beira, ao norte de Maputo, capital de Moçambique, entre o final de 2015 e o início do ano passado. Em seguida, foi enviado a um pequeno vilarejo chamado Old Fangak, no Sudão do Sul. A localidade ficava numa região pantanosa às margens de um afluente do Rio Nilo.
O trabalho consistia em manter um hospital para deslocados pelo conflito sudanês, pelo qual o povoado se mantivera intocado. A unidade de atendimento funcionava em tendas. A intervalos, a equipe se deslocava para vacinação e outras atividades de promoção de saúde conhecidas como outreach no jargão da MSF.
– Estávamos num pântano, e não havia carros nem estradas. Para chegar lá, era preciso usar avião e pousar numa pista de terra. Quando chovia, não se pousava. O deslocamento era feito por meio de barcos. Poucos profissionais de logística têm oportunidade de gerenciar uma pequena frota de barcos – relembra Johann.
Na Nigéria, o gaúcho permaneceu por três meses, de setembro a dezembro do ano passado. A MSF atuava no atendimento à população do Estado de Borno, no nordeste do país, fustigado por fome endêmica. Seu trabalho consistia em gerenciar a logística de dois hospitais a partir da capital de Borno, Maiduguri. Numa terceira unidade, eram atendidos pacientes com desnutrição severa.
– Nosso foco eram crianças, sobretudo abaixo de cinco anos, e mulheres grávidas. Nos dois hospitais, tínhamos programas ambulatoriais nos quais as crianças eram cadastradas para receber alimentação terapêutica e ser monitoradas quanto ao estado de nutrição.
Por trás da tragédia de Borno, estava o confronto entre o grupo islamista Boko Haram e o exército nigeriano. Johann não testemunhou, porém, atendimento a feridos ou vítimas de violência. Na capital, o que mais chamou sua atenção foi o grande número de refugiados internos.
– Maiduguri tem cerca de 1 milhão de habitantes, originalmente. Com o fluxo migratório, tinha passado de 2 milhões.
O gaúcho não esquece o impacto sentido ao chegar a um dos hospitais da MSF.
– O fluxo de pacientes era tão grande que as equipes médica e de triagem não conseguiam dar conta. Eram centenas de pessoas. Como os serviços funcionavam dentro da cidade, eram atendidos deslocados e também nativos. Há dialetos locais, etnias diferentes com idiomas diferentes, e havia pessoas que falavam árabe – rememora.
Passados dois anos, Johann contabiliza as experiências vividas e não pretende abandonar o trabalho com a ONG. A família (além dos pais, tem uma irmã mais velha, todos vivendo em Lajeado) estranhou sua escolha no início, mas acabou compreendendo seu ofício. Ele finaliza:
– No começo, tem de dar uma amaciada (risos), porque eles têm a visão de que é arriscado, de que não havia suporte. Uma vez que entenderam que se trata de um trabalho, gosto de pensar que têm orgulho do que faço.