Os caminhos da política, os atuais impasses das democracias contemporâneas e o refluxo das políticas identitárias foram o centro das conferências e do debate entre os últimos convidados da edição 2018 do Fronteiras do Pensamento. O cientista político americano Mark Lilla, professor na Universidade de Columbia, e o filósofo e colunista de imprensa brasileiro Luiz Felipe Pondé, fizeram, na noite de segunda-feira (19), uma rodada de análises sobre o atual estágio da democracia no mundo e os riscos que o sistema corre. A mediação foi do filósofo gaúcho Eduardo Wolf.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS e empresas parceiras CMPC Celulose Riograndense e Souto Correa. A parceria institucional é da Unicred. Universidade parceira: UFRGS. Promoção Grupo RBS.
Lilla abriu a noite com uma conferência que sumariza inquietações que o autor já expressou em um artigo polêmico publicado em 2016 no New York Times sob o título O Fim do Liberalismo Identitário – e mais tarde ampliado no livro O Progressista de Ontem e o do Amanhã, sua obra mais recente lançada no Brasil. Para Lilla, a emergência de alguns movimentos que lutam por conquistas para grupos unificados por uma identidade à margem (o movimento feminista, o movimento negro, o movimento LGBT, por exemplo) paradoxalmente se afastam do impulso de solidariedade que esteve presente nos principais modelos políticos do século 20.
– Os três principais regimes políticos do século 20, o Marxismo, o Fascismo e a Democracia Constitucional, eram organizados pelo viés da solidariedade. Solidariedade de classe, no caso do marxismo, de raça, no caso do fascismo, e entre cidadãos na democracia constitucional. As grandes batalhas intelectuais não foram entre ideologias de solidariedade e ideologias de individualismo, mas sim a respeito do que a solidariedade realmente significava e os meios legítimos de assegurá-la – descreveu.
Para Lilla, a emergência dos movimentos identitários opera com um outro tipo de lógica, ironicamente semelhante à que motivou a ascensão de Ronald Reagan e Margaret Thatcher a partir dos anos 1980: o individualismo. Lilla, contudo, que se definiu como muitas vezes mal interpretado em seu país de origem, abriu um parêntese para ressaltar que sua crítica ao individualismo dos movimentos identitários não significa a negação das conquistas ou das lutas desses movimentos.
– A emergência desses movimentos, a partir dos anos 1950, nos Estados Unidos foi um dos momentos mais gloriosos da história de meu país. O que havia de especialmente comovente e eficaz nesses movimentos foi que suas demandas foram feitas usando a linguagem da solidariedade. Negros, mulheres e gays lutaram por direitos baseados no reconhecimento de que eram cidadãos iguais aos demais.
De acordo com ele, essa característica foi substituída por uma postura que tem mais a ver com o individualismo radical que emerge no fim do século 20:
– As atuais políticas de identidade pressupõem um quadro diferente de uma sociedade democrática: não como uma união de cidadãos iguais, mas como uma aglomeração de indivíduos, grupos e tribos com demandas conflitantes.
Assim, Lilla reserva uma crítica à situação dos movimentos de esquerda nos Estados Unidos:
– A esquerda radical nos EUA se opõe ao neoliberalismo econômico, enquanto promove o que poderia ser chamado de neoliberalismo social. Seu objetivo principal não é construir solidariedade, mas reforçar o individualismo radical – disse.
Lilla afirmou ainda que a extrema restrição das pautas provocou o sentimento de exclusão de uma grande camada da população americana que se sentiu mais sintonizada com as propostas de Donald Trump. Para ele, a solução para a fratura democrática em que dois grupos não concordam sequer na definição básica de conceitos importantes não é fácil nem está à vista, mas precisará passar pela revalorização da cidadania e da solidariedade.
– O que pode ser feito? A longo prazo, precisaremos redescobrir as virtudes da cidadania, como uma ideia democrática e como um elemento de nossa retórica política.
Enquanto Lilla falou consultando anotações escritas, Pondé começou sua fala de improviso, usando de um humor mais sarcástico que o de seu colega de conferência. Pondé se dedicou a revisar e a apresentar trabalhos de correntes recentes das ciências políticas e sociais que ele chamou ao longo de sua palestra, alternadamente, de Ciência Política Cética ou Ciência Política Empírica: novos autores que, em vez de se referir à Ciência Política como uma forma de embasar o pensamento sobre a democracia de modo aplicado, refletindo sobre sistemas práticos, preferem usar dados de pesquisas estatísticas ou comportamentais para diagnosticar o estado da democracia, desmontando alguns mitos sobre política no caminho.
- O primeiro desses mitos é que as pessoas com mais repertório teriam mais condições de votar melhor ou de votar sem ceder ao preconceito de viés ideológico. Muitas pesquisas recentes mostram que a verdade é exatamente o contrário. Outro mito sobre a democracia é a ideia de que as pessoas discutem política para chegar a um consenso informado entre duas posições. É um fetiche. Quando você discute política, normalmente você o faz porque quer aniquilar a opinião do outro – exemplificou.
Outro ponto importante que a aplicação recente de métodos empíricos à ciência política ajuda a desvelar, de acordo com Pondé, é o fato de que, mesmo numa população educada, as pessoas têm ocupações cotidianas absorventes demais para se importar o suficiente com política a ponto de pesquisar propostas e se informar sobre seus rumos.
– É outro mito a ideia de que as pessoas pesquisam informações e formam consciência política. A maior parte da população forma essa massa de eleitores que opera muito por contaminação e que vota, principalmente em eleições parlamentares, de modo meio randômico.
Nesse cenário, Pondé avalia com alarme a grande novidade a ser adicionada a esse quadro nos últimos anos, as redes sociais, que tiveram papel fundamental em mobilizações políticas nos Estados Unidos e, recentemente, no Brasil.
– É outro mito o de que as redes sociais, ao permitir que todo mundo se manifeste, ajude a formar uma opinião política informada. Na verdade, as mídias sociais trazem um potencial populista gigantesco, porque nelas se torna muito fácil vender ideias simples para solucionar situações complexas. Como, por exemplo, dizer que "tem que matar bandido".
Usando o exemplo do célebre debate em que um Richard Nixon suado e irritado parecia, para a opinião pública americana, ter perdido um debate na televisão em comparação com o alto e belo John Kennedy, enquanto ouvintes de rádio acreditavam que Nixon havia se saído melhor, Pondé data desse período, nos anos 1960, o momento em que o exercício da política se tornou cada vez mais parecido com o da propaganda e do marketing. Com a adição dos algoritmos de mídias sociais nessa equação, o quadro deve piorar, segundo ele.
– Esse caso de 1960 mostra que a democracia se tornará cada vez mais dependente das ferramentas que possibilitem o acesso ao desejo dos eleitores.