As relações entre feminismo e democracia pautaram a conferência da crítica de arte e escritora Catherine Millet no Fronteiras do Pensamento, na noite de segunda-feira, no Salão de Atos da UFRGS. A francesa destacou que sua palestra, intitulada As Ideias Antiquadas da Campanha Me Too, seria a primeira vez em que falaria diretamente com o público sobre o Manifesto das Mulheres Francesas, escrito por ela e outras quatro intelectuais em repúdio à campanha contra o assédio Me Too. O texto, assinado por mais de cem mulheres e publicado no jornal francês Le Monde em janeiro, causou polêmica por defender que os homens mereceriam "a liberdade de importunar".
Ao introduzir sua palestra, a escritora ressaltou que não falava como socióloga, mas como escritora, e a partir da sua experiência pessoal – narrada no explícito livro de memórias A Vida Sexual de Catherine M. – e de um contexto social específico de quem vive em Paris:
– Falo do meu ponto de vista burguês, intelectualmente privilegiado.
Diversas vezes ao longo da noite, Catherine aproximou o que chamou de feminismo radical de ideias antidemocráticas, especialmente nos debates que se desenrolam nas redes sociais. Para a autora, os veículos de comunicação deram espaço demais à campanha Me Too:
– São denúncias de jovens meninas ricas e mimadas. Como comparar isso ao caso de uma mulher que é estuprada? Há uma grande desproporção, e é isso o que me fez reagir e me posicionar, acho que estamos misturando muito as coisas – afirmou a intelectual. – E os jornais ficam satisfeitos em repetir o que encontram nas redes sociais, sem ouvir os acusados – acrescentou.
Comentando as denúncias de assédio feitas por atrizes americanas em relação a personalidades como o produtor Harvey Weinstein, Catherine citou uma entrevista da atriz francesa Juliette Binoche:
– Ela disse "sim, já aconteceu e não cedi". Acho que as mulheres precisam medir o risco, ver o que ganharão e o que perderão se elas cederem (ao assédio). São situações difíceis, mas temos sempre a opção de dizer "não" – opinou Catherine, especificando que referia-se a denúncias no meio cinematográfico e jornalístico.
Segundo Catherine, a campanha Me Too foi fortíssima na França, onde teve uma versão chamada de Balance Ton Porc (algo como "enquadre seu porco chauvinista"), no qual as mulheres foram encorajadas a identificarem publicamente os homens que as assediaram. Classificou essa atitude como "fazer justiça com as próprias mãos", sublinhando que o impacto na vida dos acusados era considerado "dano colateral". Para Catherine, algumas manifestações no site balancetonporc.com retratam lógicas medievais como a da frase "os fins justificam os meios", de Nicolau Maquiavel.
Citando protestos contra uma exposição de Egon Schiele e uma campanha para cancelar um festival de filmes de Roman Polanski, a pensadora argumentou que a censura hoje viria mais da esquerda do que da direita. Para ela, é preciso estar atento à "ditadura do ressentimento".
– É o ressentimento de alguns indivíduos regulamentando o comportamento de todos. Nós vivemos isso: pediram que ficássemos caladas. Fomos muito repreendidas por uma suposta falta de solidariedade com outras mulheres. O que fizemos foi criticar a justiça apressada das redes sociais. Não estamos mais no início do feminismo quando a militância precisava de uma frente unida.
Catherine também se deteve na condição atual dos homens, que, segundo ela, perderam força no século 20.
– Na minha opinião, muitos jovens homens são submetidos demais ao feminismo. Na França, vemos jovens fazendo mea culpa na TV. Acho um pouco triste ver que os homens estão fazendo confissões públicas – afirmou.
A escritora pondera que, por trás de campanhas como Me Too, pode haver uma vontade inconsciente das mulheres de moldar os homens:
– Acredito que esse movimento responde à utopia de criar um novo homem. Na China de Mao Tsé-Tung, havia essa ideia de criar homens ideais que nunca cedem aos seus impulsos, que teriam sempre consciência de seus comportamentos – disse a escritora. – Freud escreveu sobre o que acontece quando nós controlamos nossos impulsos. É uma pena que os psicanalistas não tenham participado desse debate na França – acrescentou.
A palestra teve mediação da doutora em história e professora Kathrin Rosenfield.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS e empresas parceiras CMPC Celulose Riograndense e Souto Correa. A parceria institucional é da Unicred. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS.