Indiano radicado nos EUA, Siddhartha Mukherjee, 48 anos, enquadra-se na categoria de médico popstar. Autor de O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer, ele conquistou, em 2011, o Prêmio Pulitzer, mais cobiçada honraria da imprensa e da literatura americanas.
Mukherjee concilia múltiplos papéis em sua frenética rotina de quem rejeita estabelecer limites entre trabalho e vida pessoal: além de oncologista clínico e escritor (também é autor de O Gene – Uma História Íntima), atua como pesquisador e professor da Universidade de Columbia, em Nova York, onde vive com a mulher e os dois filhos.
Na última segunda-feira (3), ele palestrou no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. Antes, recebeu GaúchaZH para um bate-papo no hotel onde estava hospedado.
No seu festejado e premiado primeiro livro, O Imperador de Todos os Males, você propõe duas importantes perguntas: a morte do câncer é concebível no futuro? É possível erradicar esta doença de nosso corpo e de nossa sociedade para sempre? Como você responderia essas questões hoje?
Acho que não é possível erradicar o câncer de nossos corpos, de nossas almas e de nossa sociedade para sempre. O câncer é parte do nosso aparelho genético e celular. Os genes que nos permitem crescer e prosperar como organismos multicelulares são os genes que nos predispõem ao câncer. Então não podemos tirar isso de nós mesmos... Por outro lado, acredito que estamos fazendo enormes progressos em retardar o começo da doença pela prevenção, detectando-a cedo e tratando-a quando aparece. O panorama do câncer mudou e vai continuar mudando durante nosso período de vida. Nos EUA, a mortalidade de mulheres por tumores de mama tem sido reduzida em 1% ao ano nos últimos 25 anos. Um porcento pode parecer um número pequeno, mas 25 anos é um longo tempo. Isso é muito significativo. Ainda há muito a ser feito com outros tipos de câncer, mas não há dúvida de que o cenário está mudando.
A imunoterapia é a chave para a cura? É o nosso próprio corpo, fortalecido, que pode nos livrar dessa doença?
Não. A imunoterapia é uma de muitas coisas importantes que estão acontecendo para ajudar a curar o câncer, mas não é a única solução. Certamente, é muito efetiva com alguns tipos de câncer.
O que se pode esperar da manipulação genética ou de DNA no tratamento do câncer?
O câncer é uma doença genética, mutações genéticas causam câncer. Essa é a parte simples. O que podemos esperar da compreensão da genética na área do câncer? Progressos enormes. Entender os genes é a chave para entender por que o câncer aparece. Quanto à manipulação genética, que está alterando genes, a resposta não é simples. Se você faz manipulação genética em células de câncer e muda 99,999% das células, mas 0,001% das células não muda, essa parte vai crescer de novo. É um grande problema. Por outro lado, com técnicas como a imunoterapia, em que você não está mudando as células cancerígenas, mas sim o sistema imunológico, claro que há muitas coisas que podemos usar com manipulação genética.
Um médico é treinado para salvar vidas, mas um oncologista precisa enfrentar muitas perdas. Como você lida com isso?
Tento não pensar nisso como falhas. A palavra falha é muito fatalista. Tento entender o que aconteceu, tento aprender com aquela situação. Não apenas para situações futuras, mas também sobre esse paciente atual, tento entender cada caso em particular – você pode ir em uma direção ou em outra. Tento usar essas informações, internalizá-las, repensar o caso de uma maneira diferente.
Acho que não é possível erradicar o câncer de nosso corpo, de nossa mente, de nossa sociedade para sempre. Por outro lado, estamos fazendo enormes progressos em retardar o começo da doença pela prevenção, detectando-a cedo e tratando-a quando aparece.
SIDDHARTHA MUKHERJEE
Oncologista
O que seus pacientes mais perguntam?
Por que estamos fazendo essa terapia? Por que estou com câncer? O que posso fazer para prevenir que o tumor volte depois de ser removido? Quanto tempo ainda tenho? Como será minha qualidade de vida? Durante esse tempo, o que eu deveria fazer? Que conselhos você pode me dar sobre o que devo fazer?
Você responde à questão sobre quanto tempo ainda lhes resta?
Apresento, com muita cautela, dois possíveis cenários. Um deles é aquele em que você se cura ou o câncer se torna crônico e você tem muitos, muitos meses de vida, possivelmente anos. O outro é sobre o câncer que você talvez não tenha agora em seu corpo, porque está em remissão, mas talvez ocorra uma recidiva que não possamos controlar. O mais importante é que, a cada semana em que o paciente volta para me ver, tenho mais informação sobre como será a vida dele. Vamos aprendendo conforme andamos. Gosto de falar que estarei com eles nesse caminho. Não sou mágico, não tenho respostas mágicas, e eles estão submetidos a esse amplo espectro de possibilidades. Digo que sempre cuidarei da dor deles. Isso eu posso fazer. Tenho medicamentos, tenho outras maneiras de fazer isso, e sempre cuidarei do sofrimento deles. Eles podem sempre falar comigo sobre isso. Peço que removam esses itens da lista. Não posso cuidar da ansiedade em relação à morte, de suas preocupações com o futuro. Sobre o tempo que resta... Não é a resposta mais confortável de se dar – sete meses, oito meses, duas semanas e meia, três anos e meio. Mas é a resposta verdadeira.
Você disse que "morrer, muito mais do que a morte, define a doença". O que mais assusta as pessoas? O sofrimento ou o fim?
Acho que as pessoas têm menos medo do fim do que do sofrimento. Elas têm medo de morrer, do processo, da exaustão, da eliminação, da dor, é disso que elas têm medo. Quando a morte finalmente chega, a maior parte está em um estado em que não pode barganhar. Mas você pode barganhar com o processo de morrer. É uma grande diferença.
Às vezes os médicos vão longe demais tentando prolongar a vida de um paciente?
Acho que oncologistas foram muito longe no passado. Nosso medo amadureceu muito e pensamos muito sobre essas questões nos últimos tempos. Particularmente em relação a cânceres no sangue, acho que fomos muito longe. Estávamos trancados nesse estado de querer muito a cura, o tempo todo. Era como um cadeado. E temos de quebrar esse cadeado.
Você tem medo de morrer?
Lidar com o câncer me fez ser profundamente menos temeroso de morrer. Eu conheço melhor o processo. Acho que uma das coisas das quais as pessoas têm medo, quando se fala em morrer, é da falta de realizações. Escrever esses dois livros me proporcionou tanta realização que me fez ter menos medo de morrer. O que digo para as pessoas que estão enfrentando a morte e o morrer é que se questionem: “Que formas de realização viáveis posso alcançar?”. E que tentem alcançá-las. Certamente há coisas que você não fez e que não poderá fazer se tiver três meses de vida pela frente. Mas o que é interessante é que há coisas que você pode fazer nesses três meses. Você pode pedir perdão, dizer obrigado, encontrar pessoas que esqueceu ou deixou de encontrar, telefonar, ir a lugares que sempre desejou. Algo importante que os oncologistas esquecem é que os pacientes frequentemente pensam que se tornar um doente de câncer é algo totalmente restritivo. O médico vai dizer "não faça isso", "não faça aquilo". Sou o contrário. Penso junto: "O que você pode fazer? Está fazendo quimioterapia semanal? Vamos pular uma semana". Provavelmente não vai fazer diferença na vida daquela pessoa. É uma tentativa de pensar de maneira diferente e criativa sobre o câncer.
Você conta, em O Imperador..., que um colega recomendou, ainda durante seu período de formação, que você tivesse vida fora do hospital para aliviar a pesada carga de trabalho. O que gosta de fazer em seu tempo livre?
Escrevo muito. Tenho escrito uma coluna para o New York Times...
Estamos tentando entender que condições do corpo sinalizam que a doença (câncer) pode ocorrer em uma pessoa. Já conhecemos dois sinais: obesidade e inflamação. Isso, com o acréscimo da genética, vai constituir uma das novas fronteiras de prevenção.
SIDDHARTHA MUKHERJEE
Oncologista
Então você trabalha (risos).
Não, para mim não há uma divisão entre vida e trabalho. Gosto do que faço. Passo noites em claro olhando para células, é algo agradável para mim, me preenche. Em casa, estou lendo, escrevendo, curtindo minha família. Somos uma família pensante, gostamos de fazer coisas que excitam nossos cérebros. Às vezes, você pode fazer isso sozinho, e é aceitável. Acho que é preciso deixar claro desde cedo para si mesmo: o que você gosta de fazer? E apagar essa distinção entre trabalho e vida. Ninguém que eu tenha admirado em toda a minha vida tem esse equilíbrio entre vida e trabalho. Há um total desequilíbrio. Mas é porque eles não distinguem vida e trabalho. Trabalho é vida e vida é trabalho para todos aqueles que admiro. E eles são profundamente realizados, apesar de entrar em conflito com outras pessoas que não compartilham esses valores. Se você está procurando um parceiro, e não é todo mundo que precisa de um, tem que procurar alguém que se assemelha a você. Mas eu diria que esse equilíbrio ideal é um tipo de pensamento pequeno. Minha mulher (a escultora americana de carreira internacional Sarah Sze) me entende e eu entendo ela.
Continua correndo?
Corro muito. Tive e ainda tenho um problema no joelho, mas tenho corrido muito. Se posso, corro no Central Park, mas também na esteira. Tenho agora esses ótimos tênis (mostra um dos pés), especiais para corrida.
Vai correr hoje?
Acho que sim.
Mesmo que esteja chovendo?
Sim, antes da conferência. Fiz uma cirurgia na semana passada (levanta a camisa para mostrar a cicatriz na barriga) e corri pela primeira vez ontem (domingo), no Rio. Eu tinha um problema congênito em um músculo.
E o médico virou paciente.
Sim, e sou um paciente terrível! Sou o pior paciente. Meu médico recomendou que eu repousasse por duas semanas, e não contei que estava vindo para o Brasil. Ele me perguntou o que eu faria e eu disse que ficaria em casa. Minha mulher ficou me cutucando do meu lado.
Então você mentiu.
Sim.
Vamos torcer para que ele não leia esta entrevista.
Vamos! Mas ele não é brasileiro e não fala português (risos).
Leia outros textos e reportagens sobre o Fronteiras do Pensamento
Confira também artigos e entrevistas publicados no caderno DOC
Últimos Desejos: a rotina, no fim da vida, de pacientes sem chance de cura
Quanto à prevenção do câncer, quais são as medidas mais eficazes?
Os meios clássicos nós conhecemos muito bem, mas agora a prevenção tem ganhado novas dimensões. Estamos tentando entender que condições do corpo sinalizam que a doença pode ocorrer em uma pessoa. Já conhecemos dois sinais: obesidade e inflamação. De fato, ambos estão provavelmente ligados. Achamos agora que obesidade causa inflamação. Não é apenas ser obeso ou gordo, tem a ver com um tipo particular de gordura que causa respostas inflamatórias. Esse é provavelmente um sinal importante. Incluindo os fatores carcinógenos externos, estamos, lentamente, tentando entender o estado em que o seu corpo se encontra, e isso, com o acréscimo da genética, vai constituir uma das novas fronteiras da prevenção.
Você é muito curioso sobre o futuro, o que fica claro em O Gene... Qual será a descoberta mais espetacular que devemos testemunhar?
Muitas. Para mim, a coisa mais espetacular que está acontecendo hoje em dia é a manipulação não de genes, mas de células. Trabalho nisso, e estou muito empolgado. Estou muito empolgado com a capacidade da genética de predizer as coisas – saber, antes que você tenha a doença, que você tem predisposição à doença, podendo fazer algo a respeito disso, mudando hábitos e terapias.
A coisa mais espetacular que está acontecendo hoje em dia é a manipulação não de genes, mas de células. Trabalho nisso e estou muito empolgado com a capacidade da genética de predizer as coisas – saber, antes que você tenha a doença, que você tem predisposição à doença, podendo fazer algo a respeito disso, mudando hábitos e terapias.
SIDDHARTHA MUKHERJEE
Oncologista
O que a medicina personalizada está alcançando e ainda poderá alcançar no futuro?
Medicina personalizada significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Em geral, significa que sua doença é a manifestação de um grupo particular de fatores de risco e exposições a que você foi submetido que acabaram lhe causando a doença, e é diferente mesmo que você tenha a mesma doença, com o mesmo nome, de outra pessoa. Sua genética, sua exposição, seu histórico, seus fatores de risco fazem de você um indivíduo diferente, portanto sua resposta a terapias será diferente. Cada vez mais, no mundo contemporâneo, medicina personalizada passou a significar medicina genética. Mas acredito que essa seja uma definição limitada. A definição mais ampla é que a medicina personalizada significa que sua genética, seus fatores de risco etc. farão com que terapias específicas sejam eficazes para você, e outras não. Temos tido avanços importantes. Diagnósticos genéticos do câncer nos permitiram prescrever certos medicamentos a certas pessoas com câncer. Se você não tivesse aquela alteração de gene específica, o remédio seria inútil. Um exemplo recente e importante é usar exames genéticos para entender quais mulheres não necessitam de quimioterapia depois de ter câncer de mama. Agora estamos aptos a salvar centenas de milhares de mulheres e dizer: "Seu risco é baixo, você não precisa de quimioterapia". Isso também é medicina personalizada.
A medicina personalizada pode beneficiar muito quem tem acesso a ela, mas e quanto aos outros?
É um desafio imenso. Acredito que algumas formas de medicina personalizada acabarão se tornando mais acessíveis financeiramente porque, se você não personalizar, acabará lidando com pacientes sem poder diferenciá-los. E o melhor exemplo é o que lhe dei: a capacidade de livrar mulheres da quimioterapia para câncer de mama é incrivelmente importante não só para elas, que não serão expostas aos quimioterápicos, mas também para os países, por conta de todos os custos adicionais dos procedimentos. A medicina personalizada acabará salvando vidas e poupando dinheiro ao mesmo tempo. Agora, estamos numa fase muito cara e experimental, mas acredito que seja uma questão de tempo até que possamos aumentar o número de beneficiados.
Sobre o que você tem pesquisado ultimamente?
Muito tem a ver com imunoterapia. Temos também um extraordinário novo trabalho sobre dieta e câncer. Estamos fazendo o primeiro estudo sobre a possibilidade de mudanças na dieta alterarem a resposta à quimioterapia.
Está escrevendo um livro atualmente, não?
Sim, e ainda vai levar algum tempo para finalizá-lo. Será uma coleção de quatro livros, que começou com O Imperador... e depois teve O Gene... O terceiro será A Célula Onisciente, sobre a história da biologia celular. É o que estou escrevendo agora, há um ano e meio. O quarto tratará da história da imortalidade. Levo de três a cinco anos escrevendo cada um.
Em relação ao câncer, você se considera um otimista?
Sou sempre otimista. Nasci otimista.