Umas das principais vozes da literatura brasileira contemporânea, Paulo Scott cresceu em Porto Alegre. Dos amigos e das ruas do Partenon, onde passou a infância e a adolescência, emergem algumas das histórias e dos personagens de seu quinto romance, Marrom e Amarelo, que acaba de publicar. O livro aborda o racismo, por meio da relação de dois irmãos – um de pele retinta, outro com fenótipo mais claro. Aos 52 anos, Scott tem no currículo prêmios como o Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional (pelo romance Habitante Irreal), o Troféu Associação Paulista de Críticos de Arte (pelos poemas de Mesmo Sem Dinheiro Comprei um Esqueite Novo) e o Açorianos (por O Ano em que Vivi de Literatura). No início deste mês, partiu em viagem para a China, sendo o primeiro brasileiro selecionado para o programa de residência literária da Associação dos Escritores de Xangai, lançado em 2008. O gaúcho deve passar dois meses no Oriente, realizando palestras e trabalhando em um novo livro.
Seu novo romance, Marrom e Amarelo, reflete, de alguma forma, a história de sua família, não?
De fato, assim como o personagem principal do romance, também pertenço a uma família negra e tenho a pele bem mais clara que a de meu irmão mais novo. Nossa diferença é de um ano e dois meses. Quando eu era mais jovem, tinha essa questão de eu ter a pele e o cabelo claro. O cabelo só foi encrespar lá pelos 10 ou 12 anos. Isso fazia com que, a uma primeira olhada, a diferença entre nós fosse muito grande. Há também uma compreensão política minha, de que eu venho de uma família negra, porque meu pai é preto, um mestiço de pele marrom vermelha. Essas diferenças são pontos de partida para alcançar uma verdade que não é a minha verdade pessoal, autobiográfica.
Como foi trabalhar esse contraste entre dois irmãos com fenótipos de pele diferentes?
Percebi que, para chegar a uma verdade dos irmãos, eu teria que estabelecer certos limites. Eu, autor, não tenho a compreensão do que é a ter a pele retinta, mesmo eu me dizendo negro. Por isso, esse foi um romance muito importante para mim. Na construção da história, em um confronto pessoal com a minha biografia, percebi que minha compreensão da dimensão do preconceito racial no Brasil não era tão sólida quanto imaginava. Ao me jogar em uma pesquisa de cinco anos, percebi que meu conhecimento do sofrimento infligido pela opressão racial não era tão amplo quanto achava. É um processo de agressão profundo, que mesmo um negro mestiço como eu tem dificuldade em dimensionar.
O debate público sobre o tema não foi capaz de tratar da dimensão desse preconceito?
Publicamente, você tem cerca de 10 anos dessa discussão. É muito pouco tempo. Isso começa mais solidamente com a questão das cotas (raciais). Essa afirmação que se consolida como mais força nos governos Lula e Dilma.
As cotas sempre geraram discussão. Por quê?
Não tenho dúvida de que a maioria esmagadora do Judiciário, que é majoritariamente branco, é contra as cotas. Tenho amigos juízes. Eu me informo, converso. Tenho uma impressão de que o Judiciário não compreende a questão como deveria compreender. Tem uma lei que afirma as cotas, então não há o que discutir nesse sentido. Mas a convicção íntima da maioria dos juízes é de questionar as cotas. E o Parlamento atual é refratário às cotas. Não tenho dúvida, após escrever o livro, de que não há a devida compreensão desse processo de afirmação positiva, necessário em um país escravagista como o nosso.
O preconceito não é só de cor, correto?
Meus pais foram os primeiros que estudaram de verdade nas famílias deles. Meu pai foi o primeiro que se formou em uma graduação, em Direito, e acho que sou o primeiro da família a entrar numa pós-graduação. Me formei em Direito e entrei no mestrado da UFRGS em 1995. A questão financeira, que sempre fez da minha família uma família de classe média, é um elemento importante para gerar autonomia. Mas a questão de ter uma graduação e uma pós-graduação numa instituição respeitável como é a UFRGS torna você cada vez mais distante de uma identificação social aos olhos da sociedade sob o rótulo de ser uma pessoa negra. Ou seja, há um caldo de elementos fortíssimo que influencia esse tipo de avaliação. Como já disse Roberto DaMatta, esse tipo de variação de grau, de se tornar cada vez mais branco, vai depender da sua condição financeira, da sua instrução.
É uma novidade deste século: negros dizendo 'Não aceitarei ser tratado como subalterno, como sub-humano'. Sub-humano é um rótulo que colou nas pessoas de pele preta e não saiu mais. um movimento cultural e ideológico muito forte, sob uma metodologia cruel, aniquilou quase por completo a identidade dessas pessoas. Quando uma pessoa branca fala que veio do Vêneto ou de outro lugar qualquer, eu penso: ‘Não sei de onde minha família veio’.
Recentemente, uma ação universitária coloriu um retrato de Machado de Assis, devolvendo sua negritude.
Machado de Assis tinha a pele retinta. Isso começou a ser discutido hoje graças a um processo que gerou um volume importante de pessoas negras, principalmente do sexo feminino, nas graduações e pós-graduações de qualidade. Isso é visivelmente uma opção política recente, do governo brasileiro deste século, de possibilitar esse acesso. Você vê nitidamente um salto na produção teórica, que propicia elementos inéditos na cultura brasileira para uma pessoa negra reavaliar a sua condição de subalterno. Isso é inédito na nossa história. E só está sendo conquistado não porque o mercado quer ou porque o tempo está passando. Isso está sendo catalisado, acelerado, por uma produção teórica com reflexos nítidos na produção de audiovisuais da web. Há uma geração nova que se apropriou dessas leituras, dessa teorização crítica recente, e projetou isso para um espaço mais popular, que é um espaço disputado no YouTube, por exemplo.
A internet tem ajudado a disseminar a reflexão teórica sobre a negritude?
Sim. Ampliou muito a consciência do que é ser negro no Brasil. Isso não existia até o final dos anos 1990. É uma novidade deste século. Pela primeira vez, você vê negros dizendo “Não aceitarei ser tratado como subalterno, como sub-humano”. Sub-humano é um termo usado pelo Achille Mbembe, o grande filósofo sul-africano. Esse rótulo colou nas pessoas de pele preta e não saiu mais. É um movimento cultural e ideológico muito forte, do mercantilismo, que trouxe pessoas para tratá-las como ferramenta nas plantações de cana, no tempo colonial, sob uma metodologia extremamente cruel, que aniquilou quase por completo a identidade dessas pessoas. Por isso, quando uma pessoa branca fala que veio do Vêneto ou de outro lugar qualquer, eu fico olhando e penso: “Eu não sei de onde minha família veio”.
Aniquilar a identidade também faz parte de um processo de subjugação.
Sem dúvida. Por que os indígenas, que são submetidos a um holocausto constante no nosso país desde 1500, têm na sua linguagem, na sua postura identitária, na sua consciência e no seu orgulho uma solidez que os negros não têm? Porque eles não foram submetidos a esse processo de aniquilamento da identidade. Eles estão na terra onde sempre estiveram. Uma coisa que constatei muito fortemente em Porto Alegre, convivendo com negros africanos que vêm estudar no Brasil, é que eles têm uma solidez sobre quem eles são, sobre sua ancestralidade, uma autoestima. Isso é muito diferente com a maioria esmagadora dos negros brasileiros. A comunidade negra está em um bastante árduo processo de reestruturação da identidade, da ancestralidade, que lhe foi suprimida.
Você abordou a questão indígena no romance Habitante Irreal. Que outras diferenças vê entre os índios e os negros no Brasil e o tratamento dispensado a eles?
Os indígenas foram condenados a uma invisibilidade a que a comunidade negra não foi. Hoje são rotulados, por muitos que detêm poder de decisão, como seres inferiores aos animais, como estorvo. A Constituição de 1988 foi extremamente importante no processo de dignificação dos povos indígenas, parou de tratá-los com silvícolas, no sentido de produto selvagem, mas foi só um começo porque a conquista da dignidade demanda ações concretas do governo e da sociedade. No geral, o discurso sereno e racional dos indígenas é abafado, diferentemente do que acontece com o movimento negro. As lideranças indígenas, boa parte delas, se declaram em guerra contra os não indígenas, os invasores, os destruidores. Com a comunidade negra é diferente, pois, sem afastar as outras demandas todas, se trata de um processo de resgate daquilo que, na sua integralidade, se perdeu para sempre.
Como a atual guinada conservadora na política nacional se relaciona com a reafirmação de identidade negra?
É uma reação. Todo movimento de expansão gera uma reação. Pode ser uma reação positiva, de acolhida, de compreensão, mas também pode ser uma reação de ataque, porque as pessoas não querem perder espaço. Não tenho a menor dúvida de que a eleição de um candidato racista representa uma reação de ataque.
Você define o presidente bolsonaro como racista? Por quê?
Porque nega a existência do racismo. Negar a existência do racismo é uma postura extremamente clara de agressão e de deixar aparente a intenção de manter a desigualdade que há entre brancos e pretos. Quem sustenta esse discurso diz que não há racismo, que somos todos amigos. Sim, somos todos amigos, mas continua uma realidade em que, na maioria esmagadora das cidades, eu entro em um restaurante e não vejo pessoas negras. Eu entro em um espaço público e vejo pouquíssimas pessoas negras. Entro em uma universidade e não vejo pessoas negras. Às vezes, estrangeiros percebem com mais clareza esse racismo estrutural que está incorporado em nós.
O caos do Brasil hoje se deve ao fato de que a minha geração errou. Não quis pagar o preço do caminho mais longo, o do diálogo. O grande erro da esquerda no poder foi não realizar mudanças claras. Deu um pouco de aconchego aos pobres, deu muitas coisas aos ricos e descartou a atenção que a classe média merecia. Aí você vê um cara que fala contra o sistema, irascível e nitidamente despreparado, ganhar essa dimensão.
É uma postura que nega a realidade?
Quando alguém diz que assim está bem, está se posicionando pela da manutenção de uma injustiça. (Bolsonaro) Não se posicionou contra os bancos, que acha normal os bancos e o sistema financeiro oprimirem a população brasileira, escravizando brancos, pardos e pretos. Foi também um candidato que negou que haja fome no Brasil (Nota da Redação: Bolsonaro já era presidente, em julho, quando disse: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”.) Pior do que dizer que a Terra é plana é dizer que não há fome no nosso país.
Foi um presidente eleito pelo voto. Como convenceu tantos eleitores?
Acho que há uma indignação irracional, mas justificável, dentro do plano íntimo de cada pessoa, de revolta contra a institucionalidade política, que é reconhecidamente mais articulada em benefício dos políticos do que da sociedade. A diretriz maior é de favorecimento de quem detém o capital financeiro, de quem manda no Brasil. É sempre difícil de localizar, mas com certeza não fogem desse grupo de mandantes os donos de banco. Falta debate racional. É uma opção emocional, virulenta, impensada, de reação a uma coisa que estava posta. É surpreendente como as pessoas são tomadas em um casualidade tão poderosa, embora passageira, que dão suporte a um discurso revolucionário de extrema-direita. O grande erro da esquerda quando esteve no poder foi não realizar mudanças claras. Deu um pouco de aconchego aos mais miseráveis e pobres, deu muitas coisas aos super-ricos e descartou a atenção que a classe média merecia. Aí você vê um cara que fala contra o sistema, um cara irascível, nitidamente despreparado, que não sabe nem falar, ganhar essa dimensão, com apoio de uma elite que, ao ver que seus candidatos não repercutiriam, apostou nesse aventureiro. Um somatório de fatores fez a sociedade apoiar esse candidato. Pessoas incomodadas com a própria incapacidade de encontrar solução para suas vidas admitem entrar nessa onda e se tornam agentes dessa onda sectária, que visivelmente vai colocar o Brasil em uma guerra civil.
Você acha que um conflito armado é possível?
É um discurso que aponta na direção de uma ruptura social e que só pode acabar em uma guerra civil. Quando você faz propaganda de ideias inconstitucionais, você tem evidentemente uma figura irresponsável, sem compromisso algum com a sociedade, apenas com sua fortuna pessoal e de sua família.
Mas há um discurso de defesa da pátria e da soberania no país.
Sim, porém, compromete severamente a soberania do país. Porque se coloca interna e externamente como vassalo não de um país, mas de um governante, que é o Donald Trump, de maneira constrangedora. É um discurso de salvar o Brasil nos aliando incondicionalmente aos EUA. Quem conhece um pouco de história sabe onde acabam os que se dobram em posição de subserviência aos EUA. Todos quebram a cara. É um país imperialista. Não está brincando.
Qual é o papel da sua geração nesse processo?
Mantenho o discurso do meu livro Habitante Irreal. A responsabilidade do caos do Brasil hoje se deve fundamentalmente ao fato de que a minha geração, que está por volta dos 50 para os 60 anos, errou. Não soube construir um Estado democrático de direito. Errou em não querer pagar o preço alto do caminho mais longo, o do diálogo. Tenho conhecidos que foram ministros do STJ, chefe da Polícia Federal, chefe da Procuradoria-Geral da Fazenda... Alguns são petistas. Mas também tenho conhecidos nesse governo atual, que estão assustadoramente aplaudindo, na sua condição funcional, os rumos políticos do país. Se você tomar como exemplo o chanceler (Ernesto Araújo), ele é gaúcho e é da minha geração. É uma geração que falhou, que chegou ao poder e não conseguiu enfrentar a dificuldade que um ambiente democrático impõe. Faltou diálogo, faltou transparência. Hoje, você tem uma luta pela transparência. Parece que estamos ainda na década de 1970.
No início do ano, você lançou o livro de poemas Garopaba Monstro Tubarão. Por que poesia nessa hora?
A poesia segue sendo a arma mais odiada pelos neofascistas e totalitaristas. Na poesia, há linguagem e construção de imagens que são atentatórias a essa opção de subjugar e padronizar a sociedade, de fechar espaço para questionamento, para o sonho, o afeto, a diversidade. Esse livro dialoga como o período em que vivi em Santa Catarina, de 2016 a 2018. Olhando de perto, é um Estado conservador e de extrema-direita.
Sobre a residência literária na China, quais são seus planos para os dois meses em Xangai?
Além de palestras e encontros com editores e escritores, vou usar essa estadia para pesquisar e escrever parte do romance Rondonópolis, que fala do agrobusiness gaúcho que tomou conta do Mato Grosso. É para essa faixa oeste do Brasil que vou me voltar nos próximos dois anos. É uma colônia. Um país que o Brasil do Sul, do Sudeste e do Litoral decidiu colonizar, mais do que a própria Amazônia. Você percebe claramente que é uma invasão colonizadora, com um ótica colonial. Traz o progresso, mas é uma progresso de exploração. É claro que há exceções, mas geralmente é uma exploração em diferentes níveis, principalmente de eliminação das comunidades originárias, de subjugação dos indígenas.