A Arte da Quarentena para Principiantes. Nestes tempos nebulosos, em que mentiras são tomadas por verdades, convém avisar que o título do novo livro do escritor e psicanalista Christian Dunker é irônico. Nem o autor arvora-se em especialista sobre a condição de distanciamento social imposta pela pandemia de coronavírus – aliás, pode-se dizer que o mundo é iniciante nisso –, nem a obra traveste-se como um manual de autoajuda, cheio de tópicos e conselhos. A instrução básica proposta pelo paulistano Dunker, 54 anos completados no final de maio, é pensar. Refletir. Dar um sentido ao que estamos vivendo.
O livro é o quarto lançamento da coleção Pandemia Capital, que aborda a crise deflagrada pelo coronavírus e suas implicações na sociedade, na economia e na psicologia. A edição é da Boitempo, e as obras, curtas e com preços mais acessíveis, só estão disponíveis em versões eletrônicas, nas lojas Amazon, Apple e Kobo (A Arte da Quarentena para Principiantes tem 74 páginas e custa R$ 15).
Dunker analisa assuntos que vão da política do governo Jair Bolsonaro aos transtornos psicológicos provocados ou agravados pela pandemia, da intervenção do Estado em situações de calamidade aos preceitos para o atendimento psicológico online. Conversa com e sobre nossos medos e nossas angústias e acena com caminhos: "É na crise da ética que devemos inventar uma ética da crise", ele diz na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
O senhor abre o livro abordando o embate entre a oniropolítica e a necropolítica. Poderia explicar esses conceitos para um leitor leigo?
Em teoria social, desde Michel Foucault, consagrou-se a noção de biopolítica para designar a importância crescente, a partir do século 18, da administração e controle das populações. Desde que as nações começaram a perceber que instituições de saúde, de educação, assim como o exército, representavam uma espécie de patrimônio e consequentemente de poder para a formação de seus indivíduos, o poder passou a se exercer sobre os corpos, seja na forma da sua disciplina, seja ao modo de seu controle, seja no cuidado com a vida. Mas nesse período, além da organização dos Estados europeus, tivemos a experiência de colonização, na África, na Ásia e na América. E dentro desse processo desenvolveu-se um ramo invertido desta biopolítica, que consistia em simplesmente "deixar morrer" populações inteiras que se encontravam no caminho do progresso e da civilização. Temos então as crises sanitárias induzidas, as epidemias entre indígenas, a fome e a degradação de recursos disponíveis para as populações locais como estratégias, descendentes e associadas com a escravidão, como exemplos do que o filósofo Achille Mbembe chamou de necropolítica, ou seja, a política do "deixar morrer" e da criação de vida invisíveis, sem valor ou meramente elimináveis. Mais recentemente, nos perguntamos como a psicanálise poderia se posicionar, como forma de crítica a esse movimento alternado entre biopolítica e necropolítica. Pensamos então que, se houvesse uma política mais além daquela que forma indivíduos e que administra corpos, ou os deixa morrer, essa deveria ser uma política do sonho. O sonho, esta via régia do inconsciente, segundo Freud, é antes de tudo uma realização alucinada de desejos esquecidos. Quando sonhamos, partimos das pendências de hoje, dos pensamentos e motivos do cotidiano, que se coligam ao nosso passado de desejos desejados, ganhando força e concentração, para passar do estado de pensamento ao estado de imagem, projetando tais desejos como já realizados neste cinema particular que são as imagens dos sonhos. Oniro quer dizer sonho em grego, e uma oniropolítica é uma forma de pensar uma política que leve em conta nossa história subterrânea e como ela afeta nosso presente para a construção de um novo futuro, ou seja de um futuro que não seja mera reatualização do presente. Uma oniropolítica leva em conta também que nem sempre agimos e pensamos na forma egológica de indivíduos. Quando sonhamos, temos que nos perguntar quem é o construtor deste sonho. Sou eu, é claro, mas sou eu como outro, por isso o sentido dos sonhos sempre me é parcialmente desconhecido. Preciso contar o sonho para o outro, para junto com ele descobrir o que ele me diz. Isso se chama, em psicanálise, de transferência. Nisso a oniropolítica pensa um novo tipo de laço social, não apenas baseado na identificação ou na massa, mas um coletivo que se pergunta junto sobre o destino do que nos é comum.
No capítulo A Coroa de Espinhos, o senhor trata da "nossa irresistível tendência de aceitar que existem coisas que não conhecemos e, portanto, não dominamos". Será que o coronavírus pode nos ensinar a tolerar mais nossas fragilidades e nossa ignorância? E como cuidar para que isso não vire resignação, mas, sim, vontade de aprender e de nos fortalecer como sociedade?
Não podemos escolher um mundo com ou sem coronavírus, mas podemos escolher o que fazer com o que ele fez conosco, neste caso nos levando à quarentena, ao isolamento social ou ao recolhimento para evitar contaminação. E de fato vimos esta escolha ética entre as pessoas. Algumas se consagraram a cultivar o medo, a perda e a angústia, de forma culposa e hiperindividualizada, outras olharam para fora de suas janelas e se puseram a compartilhar seu sofrimento ou seus recursos materiais e simbólicos para enfrentá-lo. Uns procuraram culpados ou se culparam, outros se engajaram na responsabilidade que a situação oferece. Acho que os segundos estão mais propensos à dieta narcísica que estávamos precisando: mais humildade, menos controle imaginário sobre o mundo e os outros, menos teorias conspiratórias e partidos. A resignação é onde estávamos com a pauperização e a divisão discursiva do país. Espero que a solidariedade e a cultura da escassez que a pandemia nos trouxe possa nos ensinar alguma coisa, por pequena que seja. Afinal, são estas pequenas diferenças que fazem a diferença. São elas, contidas nos pequenos gestos, que contaremos para nossos filhos e netos, como sobreviventes desta experiência inédita. Mais uma vez, é na crise que podemos perceber melhor a ética que podemos inventar para sair dela.
O tolo precisa se reunir em grupos de negadores, que, gritando juntos, esperam apaziguar a insegurança que avança.
O senhor cita três perfis de reação à pandemia: o brasileiro está mais para tolo, confuso ou desesperado?
Tivemos momentos nessa distribuição de atitudes. Confusão extensa no começo, depois gradualmente desespero e depois retorno à confusão. Aliás, quem não ficou confuso está sofrendo de algum problema, e esse não é exatamente o coronavírus. Na verdade, o processo foi gradualmente reduzindo o número de tolos, mas ao mesmo tempo tornando-os mais visíveis. O tolo é aquele que nega o perigo, consequentemente se abriga do medo que ele representaria, mas como de sua negação sempre resta um fragmento de verdade, ele precisa gritar mais alto sua estupidez. Como sua insegurança tende a ser percebida como originada fora dele mesmo, por isso ele precisa tanto de inimigos imaginários, ele precisa se reunir em grupos de negadores, que, gritando juntos, esperam apaziguar a insegurança que avança. Ao final, o tolo se verá desprotegido e sozinho, descobrindo a extensão da realidade que ele nega, quando descobrir, às vezes tarde demais, que essa realidade é letal. Será preciso então que a perda seja sentida na carne ou no próprio bolso ou no coração partido para que ele se decida a tirar o atraso de sua ignorância defensiva.
Segundo o senhor, o complexo de Danning Kruger assola o país: aqueles que desconhecem um assunto arrogam-se sábios. Como exemplo, tivemos o caso da cloroquina, que virou uma bandeira do presidente Jair Bolsonaro. Como lidar com essa situação?
Com ciência, com cultura, com universidades, com pesquisas e principalmente ouvindo o outro, por exemplo, a comunidade internacional, a experiência de outros país, os organismos de controle dedicados e experientes em crises sanitárias. O problema da tolice contagiosa é que ela transforma nossas vulnerabilidades, que são também, e antes de tudo, vulnerabilidades de saber e desconhecimento em uma falta moral. Uma das características do tolo é que ele sempre sabe demais, ele precisa ter uma resposta mesmo que não tenha estudado ou se dedicado ao assunto, porque nestas situações de incerteza seu sentimento de inferioridade pode ser invertido. É ali onde temos muitas perguntas que não são respondidas que emergem o excesso e a precipitação de respostas. Podemos reconhecer seu traço comum na simplicidade, na imputação de más intenções aos outros, na proliferação de enganadores e aproveitadores do lado de lá apenas e tão somente para dizer às pessoas o que elas querem ouvir: que elas são especiais, que haverá uma proteção mágica sobre elas, que tudo vai acabar bem, que basta acreditar em uma ou duas ideias fáceis que tudo terminará bem. A inteligência tem limite, infelizmente a ignorância não. A ignorância mal tratada sempre surgirá como bravata, soberba e convicção exagerada multiplicando o próprio sofrimento bem como o dos que estão à sua volta.
A pandemia impôs perdas econômicas a muitas pessoas, que viram seus negócios pararem ou ficaram desempregadas. A saúde financeira por certo impacta a saúde mental. Um dos meios de enfrentar o sofrimento é por meio da cultura. Mas como recorrer a livros, filmes etc se eles podem ser considerados supérfluos em um momento de aperto nas contas? Qual é a função da cultura neste momento e como ela deveria ser tratada?
A cultura é essencial para a saúde mental. Ela nos ajuda a nomear nossos infortúnios e a pensar narrativamente neles. A literatura, a dança, o cinema e as artes visuais são um imenso repositório de soluções para dramas e tragédias subjetivas. Elas nos fazem pertencer e coletivizar nossa experiência de sofrimento reduzindo seu potencial de conversão em sintomas. Passamos 40 anos desprezando a forma como falamos do que sofremos, como se os transtornos mentais fossem apenas uma disfunção ou um déficit neuroquímico cerebral. Desaprendemos que o sofrimento se altera conforme falamos dele, conforme o reconhecemos ou negamos, conforme o nomeamos ou o deixamos invisível, conforme nossa "teoria" que o considera legítimo ou inaceitável, conforme nossa interpretação que nos leva a aceita-lo com um fato natural ou a nos transformarmos, ou a nos transformarmos os outros, ou a nos transformamos transformando o mundo junto com os outros.
O senhor poderia falar sobre hipocondria, histeria e o medo que gera a negação, três dos assuntos abordados no livro?
Frequentemente ligamos o medo de um perigo que vem de fora, como de um ser da natureza como o sars-covid-2, ao de uma angústia que nos assalta desde dentro. Adoramos fazer o inverso, ou seja, transpor dificuldades subjetivas para a solução de problemas. A histeria foi redescrita por Freud como uma estrutura que diante do conflito se refugia na fantasia, ou seja, que recolhe, simboliza e desloca conflitos para a intimidade do corpo, tornando-o eventualmente um enigma para o próprio sujeito. A histeria tornou-se um xingamento popular, sinônimo de "coisa psicológica", como se a mera designação de algo como psíquico sugerisse sua imediata dissolução por meio da força de vontade", da "correção de crenças" ou da "reeducação de hábitos". Uma desqualificação desse tipo é análoga à redução da política à moral. Mas assim como há os que se recolhem na fantasia, há os que projetam sua fantasia na realidade e desde então fogem para a realidade, colocando fora de si tudo o que não aceitam em si mesmos. Aí está a origem da homofobia, de muitos preconceitos e presunções. É assim que diferenças no corpo, como a raça ou a etnia, são transformados em fetiches para justificar a segregação e a discriminação. O caso da hipocondria é um terceiro tipo. Aqui acontece que a realidade externa é vivida no próprio corpo como a certeza de que estamos possuídos por um adoecimento. Temos então o mesmo tipo de certeza que advém da percepção da realidade, mas que ocorre em relação a sensações mediadas pela fantasia. Os hipocondríacos vivem uma espécie de xenofobia de si mesmos, com a atenção e a observação sobre seus corpos como um processo que individualiza o sofrimento ao extremo, mas que ao mesmo tempo o endereça ao outro, médico ou testemunha de quem se espera uma ação, ainda que seja de reconhecimento.
Como vai ser o mundo depois do coronavírus é difícil de imaginar. Mas é possível imaginar como será o reencontro de famílias, grupos de amigos, colegas de trabalho? O que as pessoas trarão na bagagem? O quanto que os costumes adquiridos em uma eventual solidão poderão perdurar? Estaremos mais saudosos ou menos tolerantes aos "defeitos" dos outros?
As pessoas terão na bagagem aquilo que elas tiverem posto nas malas durante a viagem que fizemos. Os que se recolheram sob os cobertores quentes terão uma história para contar os que viajaram entre histórias da cultura ou da solidariedade com os outros terão malas diferentes para abrir. Aqueles que multiplicaram a discórdia nas redes sociais vão sair mais possuídos ainda, os que se transformaram com as privações poderão contar algo sobre isso. Acho que teremos pequenas mudanças notadamente trazidas pela experiência concreta e irretorquível de que mudanças são possíveis, e são possíveis no registro de nosso cotidiano, de nosso trabalho, e de nossos contratos jurídicos e em nossos laços amorosos. É na crise da ética que devemos inventar uma ética da crise. Sim, damos valor quando perdemos, esta antiga lei psíquica continua em vigor. Ela vale para a liberdade, mas ela vale também para o beijo, o abraço e o aperto de mão. O valor da presença, da palavra ao vivo, do corpo do outro se combinará com o seu absoluto invertido: o medo da contaminação, das obsessões sanitárias formando um novo regime de confiança e de desconfiança.