As bilionárias bilheterias dos filmes de super-herói podem sugerir que o mercado das histórias em quadrinhos também é gigantesco e glamoroso. Negativo, como mostra a HQ A Solidão de um Quadrinho Sem Fim (2020), do americano Adrian Tomine, o premiado autor de Optic Nerve (série reunida em uma coletânea em 1998), Shortcomings (2007) e Intrusos (2015).
Pelo barulho que fazem nas redes sociais e em eventos como a Comic Con Experience, os leitores de gibis parecem um exército. Mas somos poucos. E estamos minguando. Segundo a mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada por Instituto Pró-Livro e Itaú Cultural, com aplicação do Ibope Inteligência e divulgada em setembro, quadrinhos era o gênero predileto de 19% dos entrevistados em 2011, número que caiu para 13% em 2015 e para 11% em 2019 – para efeito de comparação, a Bíblia tem a preferência de 35% do público, contos e romance, 22%.
Daí a epígrafe do livro com tradução de Érico Assis que está sendo lançado pela editora Nemo (168 páginas, R$ 69,80), a mesma que publicou no ano passado os seis contos sobre masculinidade tóxica de Intrusos. O também americano Daniel Clowes, autor de Ghost World e Wilson – ambos já adaptados para o cinema –, diz que ser um dos mais renomados quadrinistas "é como ser o jogador de badminton mais famoso do mundo". Há todo o estresse e a pressão por estar na vanguarda de uma indústria, sem a fortuna ou o amplo reconhecimento.
O que se segue em A Solidão de um Quadrinho Sem Fim é o desdobramento desse aforismo, com o mesmo equilíbrio entre o lamento e o sarcasmo. Californiano da quarta geração de nipo-americanos (seus pais, a propósito, passaram parte da infância nos infames campos de concentração para descendentes de japoneses durante a Segunda Guerra Mundial), Tomine, 46 anos, rememora toda sua trajetória. Desde a infância em Fresno, em 1982, quando, na escola, sua paixão por quadrinhos era motivo de deboche e de bullying, até o episódio crucial, quando já estava casado e tinha duas filhas, que o levou a produzir a obra – feita como se fosse um caderno de anotações íntimas em papel quadriculado: o formato imita um moleskine, com capa dura que inclui uma faixa elástica.
No meio do caminho, embarcamos em uma espécie de montanha-russa emocional. Uma hora o quadrinista se jacta pelo que os críticos disseram acerca de seu trabalho e por ser convidado para convenções e eventos; no instante seguinte, está profundamente abalado pelo que um outro crítico disse e por ser ignorado (diante dos roteiristas e desenhistas ligados aos super-heróis da DC e da Marvel) ou confundido nas convenções e nos eventos – não raro, pedem seu autógrafo tomando-o pelo amigo e ex-vizinho Daniel Clowes, com quem compartilha algumas características, como o emprego da primeira pessoa e o estilo de diário, o olhar desencantado para a vida em família e em sociedade, o senso de humor temperado por acidez e melancolia, o jeito estranho ou reprimido de os personagens lidarem com as pulsões sexuais. As anedotas, garante Tomine em entrevista por e-mail (leia a íntegra mais abaixo), foram "atenuadas em relação à realidade".
Tomine expõe as pequenas crueldades do meio em que atua, mas não poupa a si próprio. Exibe a fragilidade de seu ego, retrata suas inseguranças, documenta suas mancadas. Com tamanha honestidade, A Solidão de um Quadrinho Sem Fim deixa de ser, apenas, o que parece à primeira vista – o relato autobiográfico sobre as vicissitudes de um quadrinista – e se mostra uma reflexão ilustrada das angústias e também das alegrias da vida adulta. Independentemente da profissão, poderiam ser nossos os monólogos sobre ambição, ansiedade, autoexigência, inadequação, dedicação ao trabalho e à família, finitude... Todos nós deveríamos experimentar o exercício que Adrian Tomine fez duplamente (como autor e como personagem) em sua obra, o de sair do próprio corpo para se analisar. Nos enxergaríamos melhor do que em um espelho.
13 perguntas para Adrian Tomine
Por e-mail, o autor de A Solidão de um Quadrinho Sem Fim (The Loneliness of the Long-Distance Cartoonist, no original) concedeu entrevista a GZH:
Para começar, podemos esclarecer um mistério não resolvido no livro: como se pronuncia Tomine?
Não tenho certeza de que há uma resposta definitiva. Eu digo "to-MI-ne", mas esse não é o jeito que meu pai fala nem o modo como seria pronunciado no Japão.
Essa brincadeira em torno de seu nome e as confusões de identidade com Daniel Clowes sintetizam a frustração do protagonista de que nunca terá seu trabalho reconhecido. Isso é algo que realmente o aflige ou foi acentuado para efeitos dramáticos?
Oh, é definitivamente real! Quando muito, as representações no quadrinho atenuam a realidade.
Por falar em Clowes, vocês dois estrearam no Brasil no mesmo ano, 1999, e na mesma obra, a antologia Comic Book — O Novo Quadrinho Norte-Americano. Mas, enquanto Clowes teve cinco livros lançados no nosso país, você só teve seu primeiro trabalho solo publicado em 2019, Intrusos. Arrisca uma explicação para esse longo atraso?
Suponho que seja porque ele é um quadrinista melhor e mais popular.
É possível comparar A Solidão de um Quadrinho Sem Fim com Intrusos, que até então era seu único livro publicado no Brasil?
Eu fiz A Solidão de um Quadrinho Sem Fim em resposta a Intrusos, até certo ponto, e tentei conscientemente mudar o tom, o estilo de arte, a forma, o processo e até mesmo as ferramentas. Tenho medo de que os leitores se cansem de meu alcance e capacidade limitados, e sei que esse é um dos principais riscos de ter uma carreira extensa. Mas é claro que não há como escapar do fato de que sou a mesma pessoa que fez os dois livros e que trabalho quase totalmente isolado, sem qualquer colaboração ou contribuição externa. Portanto, é provavelmente inevitável que os dois livros sejam realmente mais semelhantes do que diferentes, com muito da minha personalidade específica e peculiaridades artísticas permeando ambos. Se alguém apontasse para um fio condutor comum de humor negro ou uma espécie de visão agridoce da vida, eu não discordaria.
Se na infância seus ídolos e suas preferências eram por desenhistas de super-herói e personagens da Marvel, por que você não seguiu esse caminho? Não seria um atalho para a fama de que o protagonista sente falta?
Porque eu superei essas coisas quando tinha cerca de 12 anos. E espero que esteja claro no livro que "fama" não é realmente meu objetivo final.
Os únicos quadrinhos bons são aqueles feitos por pessoas que foram emocionalmente consumidas pelo processo.
E se essa é uma indústria que tanto te consome emocionalmente, por que fazer quadrinhos?
Não tenho certeza se essas são opções binárias. Acho que os únicos quadrinhos bons são aqueles feitos por pessoas que foram emocionalmente consumidas pelo processo.
Sobre o seu emocional: como você se sente ao expor suas vulnerabilidades, que por vezes se manifestam como um enorme sentimento de inferioridade, em outras como um enorme sentimento de superioridade?
É muito mais fácil fazer isso nos quadrinhos do que, digamos, subir no palco e atuar. Trabalho em completo isolamento e nunca preciso ver a reação do público ao ler o livro.
Na vida real, você anseia pelo contato com o público e com a imprensa?
Não, nunca anseio por contato com o público e a imprensa. Estou feliz por tê-lo e me sinto honrado por isso fazer parte do meu trabalho, mas não, definitivamente não é algo que eu anseio.
Você fica "saindo do seu corpo" para se analisar? De certa forma, é isso o que quadrinhos autobiográficos mais permitem, não?, dado que o que o artista pode inclusive desenhar seu próprio corpo e colocar pensamentos na cabeça do personagem.
Sim, acho que o processo de criação de todos os meus quadrinhos, não apenas este, envolve alguma análise objetiva. Acho que minhas melhores histórias vieram da investigação de meus próprios medos, inseguranças, ansiedades, bem como meus pensamentos e comportamentos dos quais me arrependo.
Pela sua experiência, como podemos lidar com o medo do fracasso e com as incertezas sobre as carreiras que escolhemos?
Eu gostaria de saber a resposta para isso. Conheci muitos artistas incrivelmente talentosos que são paralisados pelo medo do fracasso ou da crítica, e muitos artistas totalmente medíocres que estão explodindo de confiança e autoestima. Infelizmente, você não pode forçar alguém a continuar ou desistir e, em última análise, é a escolha dela como navegar nessas águas. Pela minha experiência, esses medos e incertezas são úteis, desde que não se tornem debilitantes.
O que suas filhas, Nora e May, acharam da carta que você escreveu quando achou que pudesse morrer?
Minha filha mais nova é muito jovem para lê-lo, e minha filha mais velha não teve nenhuma reação articulada comigo. Ela comentou sobre muitos outros aspectos do livro, mas acho que aquela seção em particular era muito estranha para ela discutir.
Ser um quadrinista é, como diz o título, viver na solidão e produzindo sem fim?
Talvez não seja o caso de todos, mas não acho que tenho talento o suficiente para produzir meu melhor trabalho possível e ainda viver uma vida plena. Acho que um verdadeiro gênio é capaz de fazer as duas coisas, mas tive de encontrar um meio-termo entre fazer a qualidade e a quantidade de trabalho com o qual estou feliz e também encontrar tempo para aproveitar o mundo fora do meu estúdio.
Para fechar, você votará em Donald Trump ou Joe Biden nas eleições para a presidência dos Estados Unidos? Por quê?
Digamos apenas: a resposta óbvia, por razões óbvias.