Quem quiser conhecer a Porto Alegre do início do século 20 pode agora se sentir transportado para suas ruas, casas e lojas por meio da história em quadrinhos Beco do Rosário, de Ana Luiza Koehler. Trata-se do retrato de uma cidade em expansão, quando morar na região do Bom Fim significava estar longe do Centro. A narrativa, no entanto, pontua que, apesar das transformações ocorridas ao longo de um século, há muitas semelhanças sociais e políticas da Capital do passado com a metrópole de hoje.
Beco do Rosário acaba de ser lançado pela editora Veneta com apoio do Rumos Itaú Cultural, após oito anos de pesquisa e criação artística. O ponto de partida de Ana Luiza foi um mestrado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A ideia era estudar e reconstituir a aparência original dos antigos becos da zona central de Porto Alegre, que abrigavam casas de trabalhadores e mal afamados pontos de encontro noturnos.
– Como acontece em muitas pesquisas como essa, a gente acaba se apaixonando por ela. Fui estudar a política da época, a moda, os costumes – lembra Ana Luiza.
A dissertação foi defendida em 2015, mas Ana Luiza jamais abandonou o tema. O primeiro resultado editorial foi lançado de modo independente ainda em 2015, com o mesmo título da obra atual. O Beco do Rosário da estreia, no entanto, corresponde apenas a uma fração da nova edição, que conta a saga de Vitória, menina que sonha ser uma jornalista em uma época na qual mulheres não costumavam frequentar redações.
Vitória é moradora do Beco do Rosário, que foi demolido nos anos 1920 para dar lugar à Avenida Otávio Rocha. Na mesma época, ocorriam as desapropriações dos becos do Poço, do Meireles e do Freitas para a remodelação da Avenida General Paranhos, atual Borges de Medeiros.
Na pesquisa, Ana Luzia precisou lidar com a carência de fontes de informação sobre esses espaços, varridos não apenas do Centro, mas também da memória da cidade:
– Esses becos são relativamente pouco registrados. Os espaços que foram mais fotografados têm caráter mais oficial, como as praças da Alfândega e da Matriz. Do Beco do Poço, por exemplo, consegui pouco material onde era possível identificar algum trecho ou outro. A maior parte das fotografias desses becos é justamente de quando são demolidos – conta Ana Luiza.
O grande trunfo da HQ é ir além da reconstituição das paisagens que já se apagaram. Por meio de personagens ficcionais, Ana Luiza construiu um roteiro que dá conta de dramas e contradições de diferentes classes sociais. Dr. Abelardo, por exemplo, um dos porta-vozes de um jornal governista, manipula a opinião pública para que os becos do Centro sejam encarados como espaços devotados à criminalidade e à prostituição. Desse modo, mantém boas relações com a elite, ávida por se beneficiar da especulação mobiliária e deslumbrada pela construção de grandes prédios “modernos e higiênicos”.
Ao celebrar as desapropriações do beco do Rosário, Abelardo demonstra frieza em relação ao destino das famílias que ali moravam. “A indecência sempre vai existir, apenas estará morando mais longe”, afirma. Para Ana Luiza, trata-se de um modo de pensar o espaço urbano ainda presente:
– Esse tema da expulsão das populações mais pobres para as periferias é uma coisa que se repete ao longo da história das cidades brasileiras. Em nossa sociedade, muitos aspectos permanecem os mesmos de cem anos atrás.
A população negra e parda sempre vive nos espaços menos equipados e saneados, mais longe do trabalho, com mais tempo de transporte público. Isso já era algo presente na Porto Alegre de 1920. São problemas que a sociedade brasileira não resolveu, que aprecem sob outras formas e em outras escalas.
A HQ Beco do Rosário não se restringe a discussões sociais e políticas sobre o crescimento urbana de Porto Alegre. Racismo e desigualdade de gênero são dois temas também trabalhados. O artesão negro Fabrício, por exemplo, não encontra espaço para exercer seu talento na oficina de escultura onde trabalha. Devido ao preconceito do dono do ateliê, não pode executar seus trabalhos com materiais e prazos ideais. Os conflitos com o patrão se tornam inconciliáveis, e Fabrício abandona a vida de artista para se juntar a uma equipe de demolição – que trabalha justamente nos becos nos quais vivem seus familiares.
Da mesma forma, a protagonista Vitória, que tem um romance com Fabrício, enfrenta desafios para se realizar profissionalmente. Apesar ter redações premiadas no colégio e ser atenta leitora da imprensa, é desestimulada por familiares e colegas em seu sonho de trabalhar como repórter. “O que vão pensar de uma mulher falando com todos pelas ruas? Fazendo perguntas? Não é bonito”, avalia um editor.
Beco do Rosário também capta o modo como a sociedade patriarcal causava frustração em mulheres em posição privilegiada. É o caso de Frederica, que na infância era amiga de Vitória, mas cresce em um ambiente de luxo. Musicista talentosa, Frederica precisa abandonar o piano depois de se casar. Segundo o marido, “uma senhora casada não precisa dessas distrações”.
– O que me interessou no roteiro foi cruzar trajetórias de pessoas que são socialmente afastadas, mas se relacionam em determinados momentos da vida e têm seus destinos afetados pelas transformações urbanas pelas quais Porto Alegre passava. A gente estuda a cidade, mas o que queremos saber é como estava sendo a vida das pessoas naquele momento em que ela estava vivenciando tantas modificações profundas em um ritmo acelerados. Todo estudo urbano é, na verdade, um estudo social – conclui Ana Luiza.