Parece uma estrada de chão batido do Interior a receber a estrutura de trilhos para a passagem dos bondes. Mas é a esquina da João Pessoa com a Venâncio Aires, pertinho da Redenção, em Porto Alegre.
A imagem de uma Rua Mostardeiro sem os prédios altos de hoje, ocupada por dois ou três pedestres e alguns casarões que já não existem mais, provoca ilusão semelhante: parece que ativamos a memória de algo que se passou diante dos nossos olhos, mas que não tivemos a oportunidade de vivenciar.
E é assim com quase tudo o que vemos no projeto Cores da Memória, que o designer porto-alegrense Leonardo Ramos, 45 anos, mantém em perfis no Facebook e no Instagram (clique nos links para acessar os dois perfis e veja mais imagens abaixo, nesta reportagem).
– Vi muitas fotos colorizadas da Segunda Guerra Mundial – explica Ramos. – Pensei: “Por que não fazer o mesmo com fotos de Porto Alegre?”.
Em menos de dois anos no ar, ele já publicou uma centena de imagens, todas acompanhadas da original em preto e branco e algumas junto a imagens recentes, que mostram o mesmo local atualmente, além de vídeos curtos (20 a 30 segundos) sobrepondo essas visões. Também acompanham as publicações textos com detalhes da época e do local apresentados. Como a atestar a impressão de que a visita a um passado mítico é coletiva, há comentários de internautas que acrescentam informações, discutem o que ali está posto, chamam amigos a relembrar, juntos, aquilo que não viveram – mas que têm impressão de serem suas próprias memórias.
“Bons tempos que não voltam mais”, escreveu um saudosista fã do projeto, ante uma imagem da década de 1910. “É. Porto Alegre era demais”, anotou outro na caixa de comentários de um post que recria o Paço Municipal dos anos 1920-30.
Já houve quem chamou gente a ver a casa de seus antepassados “como ela era”. Mas era assim mesmo?
– Busco informações sobre as cores originais, só que não se sabe bem como eram todos os prédios. Então me baseio em referências genéricas, de edifícios parecidos, da mesma época. E encontro esses referenciais mais em cidades como Jaguarão e Pelotas do que em Porto Alegre, que não parece tão eficiente na conservação – explica Ramos.
A imagem acima, por exemplo, de 103 anos atrás, mostra a tranquilidade de uma Rua Mostardeiro e seus imponentes casarões – paisagem bem diferente da que a via tem hoje. Ramos não conseguiu descobrir de que trecho é esse registro. Segundo o designer, um colaborador do projeto indicou que seria da esquina com a Rua Mariante. Mas outro foi mais detalhista e, talvez, mais convincente: “A referência dessa imagem é a esquina da Florêncio Ygartua, olhando de costas para a ‘descida’ da baixada (que dá no Parcão), em direção ao Centro. Essa casa da esquina seria hoje um prédio que tem uma tabacaria embaixo e logo adiante, seguindo a rua para o fundo à direita na foto, seria a atual Galeria Central Park”.
O original dessa imagem está no acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, fonte da maior parte das fotografias com as quais Ramos trabalha (há, em menor proporção, imagens do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional). O trabalho em cada foto pode durar de algumas horas a até 15 dias, dependendo da complexidade dos detalhes e do estado em que o original se encontra. Há imagens com indicações de localização, período retratado e autoria. Outras são menos precisas. É quando entra o espírito colaborativo do público.
– Até hoje não recebi nenhum xingamento. Só gente dando informação e elogiando. Fico impressionado com a quantidade de pessoas que pesquisam a história de Porto Alegre por hobby, sem publicar nada sobre isso – diz o designer. – A única vez em que me cobraram mais fortemente foi porque uso mais fotos de homens do que de mulheres (colorizar retratos também é parte do projeto). É que há cem anos havia bem mais retratos masculinos – complementa.
O caso da foto acima, na histórica enchente de 1941, flagra uma série de moradores acompanhando até onde as águas do Guaíba foram capazes de alcançar. No caso, a velha Rua da Ladeira, hoje General Câmara, ultrapassando inclusive a Rua da Praia, hoje Andradas (justamente a esquina vista na imagem, capturada com a câmera posicionada provavelmente na esquina da General Câmara com a Andrade Neves). Mais de 80 mil pessoas ficaram desabrigadas na Capital, que à época tinha menos de 300 mil habitantes. “O auge da cheia, a ‘quinta-feira negra’, aconteceu a 8 de maio, quando o nível do Guaíba passou dos 4m70cm no Cais do Porto”, escreveu Ramos no post.
Com outras imagens históricas e também retratos, Cores da Memória já virou uma exposição, na Biblioteca do Sicredi, na capital gaúcha, entre o fim de 2018 e o início de 2019. O que Ramos pensa, agora, é levar o projeto a um livro. E estendê-lo, colorizando fotografias de outras cidades.
– Havia algumas ações que a pandemia me obrigou a interromper. Na volta retomo essa expansão.
As imagens que mais tocam os leitores invariavelmente são as dos cartões-postais da cidade ou aquelas que, de algum modo, ativam sua memória (inventada), caso, por exemplo, da imagem da esquina das avenidas João Pessoa e Venâncio Aires apresentada na abertura desta reportagem, na qual leitores identificaram desde uma construção que ainda existe até o que àquele instante já era chamado de Campo da Redenção – e que viraria parque nos anos seguintes.
No caso da General Câmara à época da enchente de 1941, houve, entre os comentários deixados pelos visitantes, dicas de livros sobre o período, relatos de testemunhos (“Cresci ouvindo minha avó falar sobre a enchente”, escreveu uma leitora) e uma frase que, a despeito das dificuldades enfrentadas no período, sintetiza um sentimento dos fãs do projeto: “Saudades de um tempo que eu nunca vivi”.