Eu esperava por essa HQ desde que foi anunciada pelos sites que acompanham o mercado americano de quadrinhos, em 1º de dezembro de 2015. Não, minha obsessão não chegou ao ponto de ter guardado na memória a data – essa eu reencontrei no Google. Mas gravei na retina aquela imagem – como não gravá-la? Um homem de rosto desfigurado e enfaixado a olhar tristemente para nós, tendo um Coringa fazendo guampinha em cima de sua cabeça e também olhando para nós, mas com escárnio, e atrás dos dois a figura gigantesca e impávida do Batman, quase uma estátua, duas sombras negras e profundas no lugar de seus olhos. Estaria ele olhando para nós? Estaria cego à cena que se desenrola a um palmo de seu nariz? Da trama, arquivei em um escaninho mental apenas as palavras-chave, mínimas para evitar spoilers mas suficientes para que despertassem um amor louco pelo gibi: Paul Dini. Eduardo Risso. Vertigo. Evento traumático autobiográfico.
Bom, se você, como eu, é um chato que prefere não saber nada de uma HQ que certamente vai comprar, para preservar os momentos de surpresa e espanto do virar de páginas, a satisfação de se ver emocionado pela conjugação de desenhos e palavras, esta é a hora de salvar o link deste texto nos seus favoritos e só voltar a clicar depois de ler Dark Night: A True Batman Story. Vou dar a você mais algumas linhas, dizendo que esse gibi foi publicado originalmente em junho de 2016, nos Estados Unidos, e que deve sair no Brasil até o final do ano, com o título Noite das Trevas: Uma História Real do Batman e pela editora Panini. Eu resolvi não esperar e consegui – obrigado, pai! – a edição importada (de US$ 14 a US$ 22 nas lojas americanas, entre R$ 76 e R$ 98 nos sites brasileiros em que o encontrei).
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Ok, talvez diante desses preços você pode decidir permanecer lendo, afinal, precisa de mais informações para saber se investirá. Vamos, então, retomar as palavras-chave.
Paul Dini, americano que completa 60 anos em agosto, foi um dos criadores do célebre desenho animado do Batman que teve 85 episódios produzidos entre setembro de 1992 e setembro de 1995. Com inspiração noir, nas tramas (mais sombrias e adultas do que era o costume em animações de super-heróis na TV) e no visual (roupas e carros, por exemplo, remetiam aos anos 1940), Batman: The Animated Series conquistou crianças e adultos – eu já tinha quase 20 anos quando assisti pela primeira vez, e foi paixão à primeira vista. Até o diretor Christopher Nolan aparecer, sempre tive um derivado do programa, o longa-metragem animado A Máscara do Fantasma, como o melhor filme do Homem-Morcego. A série deu ao mundo a personagem Arlequina e valeu a Dini seu terceiro prêmio Emmy de roteirista – ele já havia ganho dois por Tiny Toon Adventures. O sucesso do programa abriu portas para novas séries, como Superman (1996), The New Batman Adventures (1997) e Batman do Futuro (1999), todas também laureadas no Emmy. Mais tarde, na virada dos anos 1990 para os 2000, Dini faria parceria com o artista Alex Ross em uma série de álbuns gigantes cobiçadíssimos: Super-Homem: Paz na Terra, Batman: Guerra ao Crime, Shazam: O Poder da Esperança, Mulher-Maravilha: O Espírito da Verdade e LJA: Liberdade e Justiça.
Eduardo Risso, desenhista argentino de 57 anos, é conhecido por seu trabalho com o roteirista Brian Azzarello no gibi policial 100 Balas, que venceu quatro prêmios Eisner e dois Harvey. Seu estilo parece perfeito para uma parceria com Dini: é calcado no jogo de luzes e sombras que marca o noir, mas também tem algo de cartunesco na caracterização dos personagens.
Vertigo é o selo da editora DC voltado para quadrinhos adultos, casa que publicou ou ficou associada a muitas joias, desde Monstro do Pântano, Sandman e Hellblazer até Y – O Último Homem, passando por Preacher, 100 Balas, Os Invisíveis e Transmetropolitan, só para citar alguns gibis elogiados, premiados, cultuados. Dark Night é a primeira história do Batman publicada pela Vertigo.
Evento traumático autobiográfico – a partir daqui, você segue por conta e risco. (E o fato de eu estar fazendo algum mistério em torno disso tem a ver menos com o episódio em si do que com a maneira pela qual é encarado por Dini, tanto o personagem quanto o autor.)
Dini personagem? Como assim? Isso mesmo. Não é o Batman, mas o próprio Dini o protagonista. A primeira página é um close do roteirista, sedado e com o rosto enfaixado, em uma cama de hospital. "Então... Eu fui espancado", ele relata. "Meu osso zigomático esquerdo quebrou, meu nariz foi fraturado, tive múltiplos machucados no rosto, na parte superior do corpo e na coxa esquerda. meu cirurgião levou muitas horas para reconstruir os ossos ao redor do meu olho, utilizando alguns pinos e placas metálicas."
Ao virar a página, a primeira surpresa, o primeiro espanto – lembram que falei disso? Quebra-se o que na dramaturgia se chama de quarta parede. Dini, segurando desenhos que incluem o close de seu rosto enfaixado na cama do hospital, diz:
– Acho que eu devo dizer a vocês agora mesmo, este não é o tipo de história pelo qual sou conhecido: fantasia, ação, comédia, embora eu ache que inclua pequenas porções de tudo isso.
E então Dini começa a desfiar sua história, desde a infância, quando se considerava um Invisible Kid, invisível aos olhos dos outros – mas um alvo fácil para o bullying. Retraído, o que lhe preenchia de cores era sua imaginação: devorava tudo o que surgisse a sua frente, de livros a desenhos animados. Gibis tornaram-se companheiros inseparáveis, e o Batman, uma sombra permanente em sua vida.
Mas onde estava a sombra do Batman quando Dini mais precisou dela? É isso o que o roteirista se pergunta após sua tragédia particular – peço desculpas, agora, aos que gostam de estar informados sobre a trama de uma HQ antes de resolver adquiri-las; eu vou por outro caminho, prefiro, em vez de descrever um enredo, falar sobre as sensações que um gibi desperta, as indagações que provoca, as reflexões que incita. Não vou revelar o que aconteceu com Dini (embora isso seja dito na contracapa; fica o alerta) porque um dos prazeres de Dark Night é acompanhar e entender as circunstâncias que culminaram nesse episódio traumático, e depois acompanhar e entender as consequências desse episódio traumático. O que posso revelar é que praticamente todos os grandes vilões do Batman "aparecem" no gibi, muito bem retratados por Risso e muito bem empregados por Dini – eles sabem em que nervo do autor tocar, em que calo pisar. O que posso revelar é que o Homem-Morcego está lá, com toda a carga mítica que carrega – quase se pode OUVIR sua voz. O que posso revelar é que Dini foi extremamente perspicaz e eficaz em conectar sua vida a esses personagens que tanto admiramos, o que, por extensão, significa que Dini alcança uma conexão com qualquer um de nós. Dark Night: eis uma indispensável e adorável declaração de amor à fantasia que nos ajuda a suportar o mundo real.