Um dos mais prestigiados autores dos quadrinhos nacionais, Marcello Quintanilha lançou recentemente Escuta, Formosa Márcia (editora Veneta, 128 páginas, R$ 99,90). Trata-se de mais uma obra em que ele mergulha na alma do brasileiro, verbalizando inquietações cotidianas e desenhando cenários típicos do país.
Curiosamente, Quintanilha rechaça aquilo que muitos críticos e leitores enxergam como uma das grandes virtudes do quadrinista de 50 anos nascido em Niterói, no Rio de Janeiro, e radicado já há um bom tempo em Barcelona, na Europa.
— Não me interessa apresentar uma ideia de brasileiro, definir uma forma de ser que corresponda ao que se entende por brasileiro — ele disse em entrevista ao jornalista Ramon Vitral por conta do lançamento de Escuta, Formosa Márcia, a sexta pela Veneta (depois de Tungstênio, que foi premiada no Festival de Angoulême, na França, em 2014, Talco de Vidro, Hinário Nacional, Todos os Santos e Luzes de Niterói, presente em várias listas dos melhores do ano de 2019). — Acho que por isso minhas histórias têm sido tão bem recebidas fora do Brasil ao longo dos anos, porque me seduz tratar do ser humano em sua natureza mais crua, independentemente de um imperativo geográfico.
De fato, mesmo tirando fora os ambientes e os sotaques, sua obra continua potente no desnudamento de intimidades, fraquezas e feridas dos personagens; nos flagrantes da classe operária na luta por melhores condições de vida em ambientes adversos e, não raro, perigosos; na fragmentação, na suspensão e na dilatação do tempo narrativo.
Por outro lado, Quintanilha é um mestre em retratar os sonhos e as mazelas da nossa sociedade e em dar voz aos anseios e às alegrias de tipos característicos do país: os usuários de transporte coletivo, os jogadores de futebol e os trabalhadores da construção civil, a dentista que veio do subúrbio, o policial que leva uma vida promíscua com o crime e as mulheres que criam sozinhas seus filhos.
Com o nome de uma modinha de salão no título, Escuta, Formosa Márcia exala brasilidade. A história se passa no Rio de Janeiro, alternando as cenas entre uma comunidade controlada por traficantes e milicianos, um hospital público e as casas dos idosos onde a protagonista, uma enfermeira, faz bicos como cuidadora. Além das contas a pagar, Márcia tem uma grande preocupação: a filha, a jovem Jaqueline, que chama a mãe de "colega" e só quer saber de farra e de rolés com o bandido Tigela, que é casado com Jéssica, pai do menino Richardson e mancomunado com o policial militar Xibiu.
O que desencadeia a odisseia de Márcia é a descoberta por seu companheiro, o operário Aluisio, de que Jaqueline está com uma doença sexualmente transmissível, uma gonorreia. A protagonista decide confrontar a filha, levando a trama por alguns caminhos inevitáveis e outros imprevisíveis, como é habitual nos quadrinhos de Quintanilha.
Como também é usual nas suas HQs, nos sentimos muito próximos de seus personagens, sofremos com eles, queremos estender a mão para ajudá-los (ou até passar uma carraspana) e quase podemos ouvir suas vozes quando proferem frases como "Camarão que dorme, a onda leva" e "O que essa menina fala não se escreve". A oralidade genuína dos diálogos, carregados de gírias e ditos populares, é, mais uma vez, um trunfo do quadrinista (a lamentar, apenas, a desnecessária marcação gráfica de alguns "erros" de concordância verbal ou de supressão de letras, como em "compade"; parecem detalhes, mas criam um ruído na fluência pretendida).
Uma novidade trazida por Quintanilha a Escuta, Formosa Márcia é a distância que sua arte tomou em relação ao caráter mais documental das obras anteriores. Essa dissociação é ressaltada pela paleta com apenas 28 cores, quase sempre dissociadas da tonalidade real: o céu é verde, as pessoas são lilás ou azuladas, o tijolo dos casebres surge em rosa. Na mesma entrevista a Ramon Vitral, Quintanilha explicou que sua intenção foi espelhar "a progressiva desconexão com a realidade, tão característica dos dias atuais".
Parece uma ironia, porque Escuta, Formosa Márcia é uma HQ absolutamente antenada ao dia a dia de milhões e milhões de brasileiros.