Pele de Homem (2020), que acaba de ser publicada no Brasil, guarda semelhanças com Degenerado (2013), lançada nos últimos meses do ano anterior. Ambas as histórias em quadrinhos são de autores franceses — o roteirista Hubert (1971-2020) e o desenhista Zanzim no primeiro caso, Chloé Cruchaudet no segundo. Ambas ganharam prêmio no prestigiado Festival de Angoulême. Ambas foram editadas por aqui pela Nemo, com tradução de Renata Silveira. Ambas estão ambientadas no passado mas refletem sobre temas bastante atuais (ou que nunca saíram da pauta): a sexualidade, a identidade e a desigualdade de gênero, o preconceito, a intolerância e a hipocrisia em uma sociedade patriarcal.
Mas há diferenças fundamentais.
Em Degenerado, Cruchaudet reconstitui, com algumas liberdades poéticas, a história real do desertor da Primeira Guerra Mundial que vira travesti para viver clandestinamente com sua esposa em Paris.
Em Pele de Homem (160 páginas, R$ 74,90), Hubert e Zanzim viajam mais longe no tempo — vamos para a Itália renascentista —, é uma mulher que assume um papel masculino e, por não terem compromisso nenhum com fatos documentados, os quadrinistas se permitem fantasiar mais, sem, contudo, perder de vista o engajamento com a realidade enfrentada pela população feminina e por quem não se enquadra nas convenções sociais.
A protagonista e narradora é Bianca, uma moça de boa família que já se encontra "em idade de se casar". Seus pais arranjam um matrimônio com o jovem Giovanni, simpático e rico comerciante. Mas um ilustre desconhecido aos olhos de Bianca.
Diante da frustração da sobrinha, uma tia revela a Bianca um segredo de família: a tal pele de homem do título. Ao vesti-la, a garota se transforma no belo Lorenzo, e agora pode transitar pelo mundo masculino e, como diz o material de divulgação da HQ, "conhecer seu noivo em seu hábitat natural".
A partir daí, esta fábula bem-humorada — ainda que tensa em certas passagens — e nada pudica toma rumos que convém não antecipar. Dá para dizer que Hubert e Zanzim vão discutir o cerceamento do prazer feminino, os códigos de conduta impostos às mulheres (e também aos homens), os dois pesos, duas medidas em relação a comportamento sexual, a imbricação do moralismo repressor com o fanatismo religioso. Em paralelo à vida dupla de Bianca, corre a trama de seu irmão, o padre Angelo. Segundo ele, conta a protagonista, "o mal vem das mulheres, súcubas provocadoras! Os homens são pobres coitados à mercê de nossos desejos, de que serão protegidos se nos cobrirem da cabeça aos pés".
A Itália renascentista parece o século 21, no qual a cultura do estupro ainda é celebrada em filmes como 365 dni, a taxa de feminicídios cresce no Brasil e as mulheres voltaram a se tornar alvo de ataques e restrições no Afeganistão.