Presente em algumas listas dos melhores quadrinhos lançados no Brasil em 2020 — como a de GZH, a da revista O Grito e a do canal no YouTube 2Quadrinhos —, Degenerado (editora Nemo, tradução de Renata Silveira, 192 páginas, R$ 69,80) venceu o prêmio de melhor álbum no prestigiado Festival de Angoulême, na França, em 2014. A obra da francesa Chloé Cruchaudet reconstitui, com liberdades poéticas, a história de um desertor da Primeira Guerra Mundial que se traveste de mulher para viver clandestinamente em Paris na companhia da esposa.
Muitas das aventuras de Paul/Suzanne e Louise são vividas no Bois de Boulogne, o Bosque de Bolonha, um mítico parque público de Paris, que já havia sido eternizado por filmes como As Damas do Bois de Boulogne (1945), de Robert Bresson, Gigi (1958), de Vincent Minnelli, Os Amantes (1958), de Louis Malle, e A Bela da Tarde (1967), de Luis Buñuel. Há um contraste interessante entre a delicadeza do desenho e a crueza de muitas passagens da trama, desde as trincheiras da guerra até o desfecho nos tribunais.
Chloé, 44 anos, é uma quadrinista que coleciona prêmios. Ganhou o Prix René Goscinny por seu livro de estreia, Groenlândia-Manhattan, em 2008. Em 2010, o primeiro volume da trilogia Ida foi selecionado entre as melhores obras do Festival de Angoulême. Degenerado — no original, Mauvais Genre — também recebeu o grande prêmio da Associação de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos francesa em 2013.
Em entrevista concedida por e-mail, a autora falou sobre sua carreira:
O que mais despertou seu interesse na história de Paul e Louise: a transformação a que ele se submeteu ou suas aventuras sexuais no Bois de Boulogne?
Eu fui primeiramente atraída pela história desse homem que tinha várias identidades. Ele teve de mudar sua personalidade não por escolha, mas por necessidade. Sua psicologia estava perturbada, e isso me fascinou. Como muitos roteiristas, devo admitir que sou fascinada por personagens complexos, "limítrofes", até mesmo antipáticos. Adorei desenhá-lo, trazê-lo de volta à vida. Às vezes fico pensando nele, ele é como um amigo querido de quem perdi o contato. Além disso, o período entre as guerras me interessa. Foi uma época em que os homens foram traumatizados pelas trincheiras, e as mulheres viviam uma sociedade sem homens.
No posfácio, os historiadores Fabrice Virgili e Daniele Voldman, autores de La Garçonne et l'Assassin, livro em que se baseia seu quadrinho, discutem os limites do trabalho deles e a sua liberdade para inventar e entrar na cabeça dos personagens. Qual foi seu maior desafio? Que tipo de cuidados históricos respeitou?
Eu realmente tentei me colocar no lugar deles e imaginar como esse disfarce perturbou o equilíbrio do relacionamento e transformou a personalidade de Paul de forma duradoura. No ensaio dos historiadores, há áreas cinzentas para as quais ofereci uma interpretação pessoal e não me censurei para mostrar a complexidade, o lado cru, para tentar ir além da história "engraçada" de um homem que se disfarça de mulher. Eu tomei muitas liberdades, porque, por exemplo, para tudo que diz respeito à intimidade do casal, obviamente não há arquivos históricos. Por outro lado, algumas fontes incluíam elementos tão surpreendentes que preferi não incluí-los em minha história... Paul, aliás, Suzanne, participou do campeonato francês feminino de paraquedismo. Como em um ambiente proletário ele foi capaz de acessar o paraquedismo? No entanto, isso é comprovado por fotos da imprensa. Paradoxalmente, a verdade às vezes não é provável. Assisti a muitos filmes, especialmente curtas-metragens que explicam o trauma da guerra. Também reli Viagem ao Fim da Noite (1932), de Louis-Ferdinand Céline, especialmente para absorver a escuridão das trincheiras. Então fecho todos esses arquivos e me inspiro nos vestígios que tudo isso deixou em minha mente.
Na sua história em quadrinhos, Paul surge como uma pessoa quase um século à frente de seu tempo na questão da sexualidade e da identificação de gênero. Concorda? Como ele poderia contribuir para as discussões de hoje sobre os papéis que a biologia ou a sociedade impõe?
Através desses destinos singulares, surgem a questão do inato e do adquirido que surge e da forma como as características de feminilidade e masculinidade se constroem de forma mais ou menos artificial. Na França, quando eu estava trabalhando no livro, houve debates bastante acalorados sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. As questões de gênero são muito controversas, e é interessante questionar isso, mas fiquei chocada com a violência que isso provoca. Muita gente reage como o juiz que estou pondo em cena, para quem existem duas categorias, heterossexuais e homossexuais, quando na realidade há uma diversidade extraordinária. O livro inclui uma cena em que Paul é espancado. Infelizmente, essa violência ainda está presente, para quem não está na norma.
E sobre Louise: como você encara a personagem histórica?
Louise queria salvar Paul, para evitar que ele fosse capturado pelos gendarmes (policiais). Ela pressiona o marido a fazer escolhas, ajuda ele em sua transformação, inicia ele no mundo das mulheres. Ela é sua mentora, ensina-o a se comportar e tem de pressioná-lo para encontrar um emprego, um trabalho muito difícil como costureira. Paul amava sua esposa e Louise também o amava, e ela estava pronta para fazer qualquer coisa por ele. Infelizmente, com o alcoolismo e o trauma da guerra, esse amor não foi suficiente. Fontes históricas mostram uma mulher inteligente, que certamente teve de sofrer muito para chegar a esses extremos.