Nos últimos dias do ano, estreou na Netflix um filme que é a cara do verão. É verdade que Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022) gira em torno de um assassinato e que a duração rouba um considerável tempo do dia ou da noite (duas horas e 19 minutos), mas o segundo segmento da franquia Entre Facas e Segredos, escrita e dirigida por Rian Johnson e protagonizada por Daniel Craig, revela-se um passatempo muito gostoso e colorido (os cenários e os figurinos são uma atração à parte), que faz rir e não exige demais da cabeça do espectador. Até o comentário sócio-político-econômico está mais leve e nítido em relação ao primeiro título.
Lançado em 2019, Entre Facas e Segredos (Knives Out) fez um baita sucesso. Nas bilheterias, arrecadou US$ 313 milhões, quase oito vezes o seu custo (US$ 40 milhões). Entrou na lista dos 10 melhores filmes elaborada pelo American Film Institute, concorreu ao Oscar e ao Bafta de roteiro original e recebeu três indicações ao Globo de Ouro: melhor comédia ou musical, ator (Craig) e atriz (Ana de Armas).
Na trama, o estadunidense Johnson, depois de ser alvo da fúria dos fãs de Star Wars por causa de Os Últimos Jedi (2017), resolveu aventurar-se em outro universo que desperta o fanatismo: o de Agatha Christie (1890-1976). Mas o cineasta não fez uma adaptação direta, apenas buscou inspiração — o detetive Benoit Blanc é excêntrico e arrogante como o célebre Hercule Poirot — e modernizou o tipo de história contada pela romancista inglesa em obras como O Assassinato no Expresso do Oriente, Morte no Nilo, Os Crimes ABC e E Não Sobrou Nenhum (também conhecido como O Caso dos Dez Negrinhos).
Elementos do enredo deste último livro podem ser percebidos em Glass Onion, que novamente disputa o Globo de Ouro (nas categorias de melhor comédia ou musical e ator). No filme, um grupo de amigos com fama de "disruptores" recebe um convite para passar um fim de semana em uma ilha na Grécia, onde, no topo de uma casa decorada entre o clean e o excessivo, há a enorme cebola de vidro (glass onion, em inglês) do título. O anfitrião é o bilionário do ramo da tecnologia Miles Bron (Edward Norton), personagem que parodia Elon Musk, dono da fábrica de carros Tesla, dos foguetes SpaceX e do Twitter.
Bron propõe uma brincadeira de detetive à turma formada por:
Claire Debella (Kathryn Hahn, a Agatha da minissérie WandaVision), governadora de Connecticut e candidata ao Senado;
O cientista Lionel Toussaint (Leslie Odom Jr., indicado ao Oscar de coadjuvante por Uma Noite em Miami), que trabalha para a empresa de Bron, a Alpha;
A ex-modelo Birdie Jay (Kate Hudson, em seu melhor papel desde o já longínquo Quase Famosos), que é completamente sem-noção — ou totalmente preconceituosa —, e sua assistente Peg (Jessica Henwick, de Matrix Resurrections), que vive tentando evitar que a patroa seja cancelada por causa dos absurdos que diz ou posta;
O influenciador digital de extrema-direita e defensor do "orgulho hétero" Duke Cody (Dave Bautista, o Drax de Guardiões da Galáxia), que viaja na companhia da namorada, Whiskey (Madelyn Cline, da série Outer Banks);
E Cassandra Brand, a Andi (a cantora e atriz Janelle Monáe, dos filmes Moonlight e Estrelas Além do Tempo e da segunda temporada do seriado Homecoming), que fundou a companhia com Bron e foi escanteada.
Depois que todos desembarcam na ilha, as interações entre os personagens vão trazendo à tona segredos, mágoas e rabos-presos — e possibilitando a Rian Johnson satirizar (a exemplo da série The White Lotus e do filme O Menu) o mundo dos ricos, não raro pautado pela ganância e pela corrupção, a elite egoísta, alienada, deslumbrada e ignorante, o embuste de supostos gênios, os homens brancos ciosos de seus privilégios. Evidentemente, haverá um crime a ser investigado — ou uma cebola a ser descascada — por Benoit Blanc, um tipo que Craig, agora aposentado da franquia 007, permite-se interpretar com menos truculência e mais floreios, menos cinismo e mais deboche.
Também evidentemente, não se pode dar detalhes sobre o crime, nem sobre seus antecedentes, para não privar o público da diversão de rever cenas por outro ângulo ou sob um novo contexto nem do prazer na montagem do quebra-cabeças. Que desta vez é menos labiríntico, menos complexo do que o mostrado em Entre Facas e Segredos. É como diz Blanc a certa altura, em uma ironia para com o próprio filme:
— Gosto da cebola de vidro como metáfora. Um objeto que parece ter camadas densas, mas, na realidade, o centro está à vista.