Eu já devia ter visto RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (2022), em cartaz na Netflix, quando o cineasta e professor Carlos Gerbase indicou esta superprodução indiana, em coluna publicada no final de setembro em GZH.
Devia ter corrido para a plataforma de streaming em 12 de dezembro, quando a Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood indicou a obra dirigida por S.S. Rajamouli a duas categorias do Globo de Ouro, que será entregue em 10 de janeiro: melhor longa-metragem em língua não inglesa e melhor canção original, Naatu Naatu, de M.M. Keeravani (música), Kala Bhairava e Rahul Sipligunj (letra).
Não vi, e agora me arrependo por não ter incluído esta aventura extravagante e apaixonante na minha lista dos 20 melhores filmes de 2022, que foi ao ar no dia 14, mesma data em que RRR foi anunciado como concorrente a cinco troféus do Critics Choice Awards, a premiação dos críticos de rádio, TV e internet nos Estados Unidos e Canadá, a ser entregue em 15 de janeiro: melhor filme, direção, efeitos visuais, longa em idioma estrangeiro e canção original (de novo, Naatu Naatu).
No Oscar, a Índia selecionou Last Film Show, de Pan Nalin, para o prêmio de filme internacional — e o título está entre os 15 semifinalistas de onde sairão os cinco indicados, em 24 de janeiro. Mas RRR também pode pintar na festa marcada para 12 de março. Além de Naatu Naatu estar bem cotada entre as canções, especula-se que, dentro da política de globalização que teve o triunfo de Parasita (2019) como ápice, a Academia de Hollywood olhe com carinho para esse sucesso de público (por 15 semanas, foi o filme não falado em inglês mais visto na Netflix), de crítica (apareceu no ranking de 2022 do site IndieWire e da revista Sight and Sound) e junto à própria turma do cinema. Entre os diretores que louvaram o trabalho de Rajamouli, estão Edgar Wright (de Em Ritmo de Fuga e Noite Passada em Soho), Scott Derrickson (de A Entidade e Doutor Estranho), James Gunn (de Guardiões da Galáxia e O Esquadrão Suicida) e os irmãos Anthony e Joe Russo (de Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Ultimato).
Você que ainda não viu RRR pode estar se perguntando: por que tanto auê? Porque Rajamouli, sua equipe técnica e seu elenco não têm medo de abraçar o exagero e o ridículo. Mais do que não temerem, fazem isso com uma paixão contagiante. É uma declaração de amor ao caráter fantástico do cinema, espaço onde tudo pode, onde a violência de mentirinha é capaz de nos fazer sofrer e sorrir na mesma cena, onde a imaginação é o limite — desde que, claro, haja orçamento suficiente, o que não foi problema para o diretor de 49 anos, considerado o mais popular da Índia (são dele também Seu Crime, seu Sofrimento, de 2012, e o díptico Baahubali: O Início, de 2015, e Baahubali: A Conclusão, de 2017).
Com três horas e sete minutos (a longa duração é comum em Bollywood e Tollywood, as principais indústrias cinematográficas do país asiático), RRR se passa na década de 1920, quando a Índia ainda era colonizada à mão dura e sanguinária, como bem apontado por Gerbase, pelos britânicos. Quando a fictícia história começa, a esposa do cruel governador Scott (Ray Stevenson, o Titus Pullo da série Roma) resolve levar de um vilarejo para sua casa, em Deli, uma menina, Malli, como se fosse um souvenir. O sequestro vai provocar a revolta do protetor daquele povo, Bheem (N.T. Rama Rao Jr.), que arquiteta um plano para resgatar a guria e devolvê-la a sua família.
Entrementes, conhecemos o policial Raju (Ram Charan Teja), que surge aos nossos olhos em meio a um grande protesto contra a prisão de um líder indiano. Se na cena anterior RRR apresentara vilões caricatos, agora nos mostra uma espécie de super-homem, que se engalfinha com centenas de adversários, em uma luta à base de soco, pedra e porrete, para capturar seu alvo e entregá-lo aos oficiais britânicos.
Raju quer ser ele próprio um oficial, e esse seu objetivo vai fazer a sua trajetória cruzar com a de Bheem, ele também um herói que não deve nada aos da DC ou aos da Marvel: de mãos vazias e peito nu, enfrenta um lobo e um tigre — ambos gerados por computação gráfica, como todos os animais que aparecerão no prosseguimento da trama, não raro atacando e devorando humanos.
Haverá muitas outras cenas que desafiam o bom gosto ou as leis da física, provando o despudor e a inventividade de S.S. Rajamouli — no quesito ação amalucada, RRR supera até outro fenômeno da temporada, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Se o cinema hollywoodiano procura impressionar pelo realismo (vide Avatar: O Caminho da Água), o filme indiano assume o artificialismo. Simultaneamente, busca destacar valores básicos: o altruísmo, a amizade, a coragem, a honra, a resiliência.
Mas também veremos atitudes desabonadoras, como traição e tortura, e momentos de humor ou de romance. Às vezes, uma cena violentíssima pode desaguar em um número musical, outro elemento característico dos épicos indianos — prepare-se para perder o fôlego com a coreografia de Naatu Naatu, e prepare-se para ficar com o refrão da canção grudado na cabeça. Essa alternância de gênero, a quantidade de reviravoltas e de flashbacks e o frenesi das sequências de ação tornam os 187 minutos de duração bastante palatáveis. Mais do que isso: deliciosos. Como se fosse um banquete indiano.