Ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim e cotado ao Oscar nas categorias de documentário e filme internacional, representando Senegal, Dahomey (2024) é uma obra contemplativa e reflexiva que remete a uma agitada aventura dos super-heróis Marvel.
Em Pantera Negra (2018), o personagem interpretado por Michael B. Jordan, Killmonger, admira objetos africanos em um museu de Londres. A curadora da instituição vai identificando a origem das peças: esta era dos Bobo Ashanti, veio de Gana e data do século 19; esta era do povo Edo de Benin, século 16. Quando ela se refere a um martelo do século 7 como proveniente dos Fula de Benin, Killmonger a corrige: "Foi retirado de Benin por soldados britânicos, mas é de Wakanda. E é feito de vibranium", ele diz, citando o país e o metal fictícios e poderosos do Universo Marvel. Killmonger afirma que vai levar o artefato, a mulher protesta, "esses trabalhos não estão à venda", e o personagem de Jordan retruca:
— Como você acha que seus ancestrais conseguiram isso? Você acha que eles pagaram um preço justo? Ou eles simplesmente pegaram, como fizeram com todo o resto?.
Em Dahomey, que estreia nesta sexta-feira (13) na plataforma de streaming MUBI, a diretora Mati Diop amplifica a discussão sobre o roubo de obras de arte pelos europeus durante a época da invasão, da colonização e da escravização da África. O ponto de partida deste longa curto — tem apenas 68 minutos — é a devolução, pela França, de 26 tesouros saqueados entre 1872 e 1960 do antigo reino de Daomé (1600-1904), hoje República do Benim, retratado no épico A Mulher Rei (2022). O protagonismo é todo dos beninenses: franceses só aparecem embalando os objetos no Museu du Quai Branly — Jacques Chirac, em Paris. A ideia parece ser evitar qualquer discurso vanglorioso ou de expiação da culpa branca.
Sobrinha de um célebre cineasta senegalês, Djibril Diop Mambéty (1945-1998), autor de Touki Bouki: A Viagem da Hiena (1973), a francesa Mati Diop é a mesma da ficção Atlantique (2019), que recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Como fez nesse drama romântico encenado em Dacar, capital do Senegal, em Dahomey ela também adota um olhar observacional (jamais cede à tentação de comentar o que está filmando) e, paradoxalmente, emprega elementos do cinema fantástico.
Ao acompanhar a preparação das peças no Quai Branly, a cineasta dá voz ao 26º objeto de arte a ser repatriado, uma estátua que representa Ghézo, rei de Daomé entre 1818 e 1859. Coube ao escritor haitiano Makenzy Orcel redigir e interpretar a narração em off, na qual Ghézo rememora seus tempos de glória e reflete: ainda vai reconhecer a África? Ainda será reconhecido? Por meio desse "personagem", Mati Diop propõe identificação e meditação sobre os milhões que foram arrancados da África no passado ou que se refugiaram na Europa em tempos mais recentes, sobre desenraizamento e não pertencimento.
Em Benim, as obras vão ser expostas em um museu de Abomey, cidade que era a capital de Daomé. Por um lado, a restituição é motivo de júbilo e orgulho, como indica uma solenidade documentada em Dahomey. Por outro, gera uma tremenda discussão entre os jovens alunos da Universidade de Abomey-Calavi.
As manifestações formam um mosaico rico das diferentes percepções. Qual atitude a tomar diante do regresso desses antepassados? É para celebrar a devolução ou para reclamar que tenham voltado apenas 26 dos cerca de 7 mil objetos de arte saqueados ao longo da exploração francesa? As peças devem ser acondicionadas em um museu ou precisam ser levadas de volta aos lugares de culto de onde foram retiradas? O próprio idioma empregado no debate provoca controvérsia: ao conversarem em francês, os beninenses não estariam se resignando à dominação cultural?
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