O momento de enorme tensão política na Coreia do Sul, onde o presidente Yoon Suk-yeol enfrenta a ameaça de impeachment depois de sua tentativa de decretar a lei marcial, aumenta a relevância de uma história em quadrinhos recém lançada no Brasil: Meu Amigo Kim Jong-un (2024). Nela, a sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim traça um retrato do líder supremo da Coreia do Norte e examina a turbulenta relação e a perigosa rivalidade entre os dois países asiáticos.
Esses dois países eram um só. A divisão remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando o seu domínio pelo Japão foi desbaratado. Tropas da União Soviética libertaram a parte setentrional da península, e o exército dos Estados Unidos ocupou a porção meridional.
Em 1948, como consequência da Guerra Fria entre soviéticos e estadunidenses, o território foi dividido em duas regiões, com governos separados e antagônicos (comunista ao norte, capitalista ao sul) e muito impasse em relação às fronteiras. O conflito originou a Guerra da Coreia, travada entre 25 de junho de 1950 e 27 de julho de 1953, quando foi assinado um armistício — mas não um tratado de paz: tecnicamente, Coreia do Sul e Coreia do Norte ainda estão em guerra.
No pronunciamento em que declarou a lei marcial (ou seja, a implementação de uma legislação militar que restringe os direitos civis), o presidente Yoon Suk-yeol alegou a intenção de "proteger a República da Coreia das ameaças das forças comunistas norte-coreanas e para erradicar imediatamente as inescrupulosas forças anti-estado pró-Pyongyang (a capital da Coreia do Norte) que pilham a liberdade e a felicidade do nosso povo". Ele acusou a oposição, que é maioria no Parlamento, de estreitar as relações com os vizinhos inimigos.
A atitude de Suk-yeol remeteu, por um lado, ao passado autoritário da Coreia do Sul, que tem histórico de golpes e foi governado por várias ditaduras militares até 1987; por outro, aos temores despertados pela Coreia do Norte, um dos países mais fechados do mundo, que vem montando um arsenal nuclear e que é apontado como um inferno na Terra por causa de restrições (que vão da escassez de energia elétrica à proibição do acesso à internet) e violações impostas à população. O governo norte-coreano diz que há "uma campanha difamatória para derrubar o regime", mas há episódios documentados, como a crise de fome que resultou em centenas de milhares de mortes entre 1994 e 1998. Ou a existência de severos campos de concentração para prisioneiros políticos.
Publicada pela Pipoca & Nanquim, com tradução de Yun Jung Im, 292 páginas e preço de R$ 99,90, Meu Amigo Kim Jong-un é mais uma obra em que Gendry-Kim dedica-se a revisitar momentos históricos da Coreia do Sul. Grama é sobre as mulheres que foram sexualmente escravizadas pelo exército japonês durante a primeira metade do século 20. Em Batatas (inédita no Brasil), ela reconstitui a tragédia do Levante de Jeju, ocorrido entre 1948 e 1949 na maior ilha do país. A Espera retrata o drama das famílias separadas por causa da Guerra da Coreia.
Nascida em 1971, Gendry-Kim costuma misturar pesquisa, reportagem e memória, não raro alternando o rigor histórico com o relato de pessoas comuns que foram arrastadas para dentro do furacão e com o seu próprio ponto de vista, as vivências de sua família e as suas experiências pessoais. A primeira personagem a aparecer em Meu Amigo Kim Jong-un é justamente a quadrinista, pois mora na ilha de Ganghwa, bem perto da fronteira entre as duas Coreias.
"O Norte anda lançando mísseis, o Sul e os Estados Unidos estão fazendo exercício militar conjunto, e até nossa ilha tem simulação de bombardeio dia sim, dia não", ela descreve. Na companhia do marido francês e dos cães Batata e Cenourinha, a autora vive entre o medo de estourar uma guerra e a resignação — "Eu não posso ir embora e deixar minha mãe. Ela já está velha e doente". Então, vai à procura de informações sobre haver um bunker ali por perto.
É só a partir da página 25 que Kim Jong-un ganha protagonismo. Primeiro, Keum Suk Gendry-Kim desenha a árvore genealógica da família dele. O avô, Kim Il-sung (1912-1994), governou a Coreia do Norte desde a fundação do país, em 1948, até morrer. O pai, Kim Jong-il (1941-2011), herdou o cargo. Muito antes de falecer, apontou como seu sucessor não o primogênito de seu segundo casamento, Kim Jong-chul, porque achava que "tinha um temperamento muito dócil", conforme relata Cheong Seong-chang, diretor do Centro de Pesquisas do Instituto Sejong, especializado em estudos sobre a Coreia do Norte. Jong-un, hoje com 40 anos, teria sido escolhido quando ainda tinha apenas oito. Aos 29, tornou-se o comandante de um Estado com plutônio e urânio suficientes para produzir dezenas de armas nucleares.
Seong-chang é um dos tantos entrevistados por Gendry-Kim. A cada conversa, a autora demonstra seu talento para entrelaçar o particular e o coletivo, a recordação e a História, o cotidiano e o político. Também exibe sua versatilidade artística: os desenhos ora têm um traço mais realista, ora são cartunescos ou mesmo caricaturais, ora investem no abstrato e no poético.
A lista de personagens reais inclui o repórter Lee Je-hoon, que acompanhou os seis testes nucleares da Coreia do Norte e as cinco conferências intercoreanas e conta sobre Kim Jong-un ter feito cirurgias plásticas e treinado gestos e falas para ficar mais parecido com o avô. Já uma anônima desertora norte-coreana pinta um retrato surpreendentemente positivo do líder supremo:
— Kim Jong-un demonstrava vontade de colocar o país nos trilhos, porém, tem reformas que ele não consegue fazer por causa da resistência dos conservadores. Quando ouvimos falar que ele matou fulano, que acabou com sicrano, é porque está tentando avançar com as suas reformas.
Essa mulher também aborda a diferença de mentalidade entre o povo de Pyongyang e o de Seul, a capital sul-coreana. Diz que, no Sul, as pessoas "agem como se prezassem muito pela privacidade, mas dentro das empresas se sujeitam de forma absoluta a um superior". E afirma que "não existe o conceito de violência sexual no Norte": trata-se de uma troca de favores, seja em uma fábrica ou em um presídio.
No capítulo anterior ao da desertora, Gendry-Kim entrevista outra figura anônima. É um francês identificado somente como J. (até seu rosto é mantido em sigilo). Ele era amigo do filho da primeira esposa de Kim Jong-il, Kim Jong-nam, que foi assassinado em 2013 no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia, para onde havia fugido após a ascensão de Jong-un. Esse personagem francês diz uma frase que fica martelando na cabeça da autora e do leitor:
— Na Coreia, tem duas opções: ou se vive sentindo medo o tempo todo, ou se vive ignorando o perigo que existe. Se é para viver, melhor que seja sem pensar em guerra.
A reflexão encontra eco nas declarações de outro entrevistado, esse sim público e ilustre: Moon Jae-in, filho de refugiados norte-coreanos que foi presidente da Coreia do Sul de 2017 a 2022. Ele lembra do célebre encontro com Kim Jong-un, em 2018, e comenta sobre as fracassadas negociações pela desnuclearização da Coreia do Norte e sobre o difícil diálogo entre os dois países.
— Paz é economia — afirma o ex-presidente. — Seria bom se pudéssemos ao menos manter a paz, ainda que por um fio.
"O ódio só gera um ódio ainda maior", sentencia Keum Suk Gendry-Kim nas últimas páginas de Meu Amigo Kim Jong-un, poucas linhas antes de fazer um apelo universal ao diálogo: "As escolhas de hoje definem a história de amanhã".
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