Nestes tempos em que a Coreia do Norte e a Coreia do Sul estão sob holofotes da imprensa — a primeira, por causa de testes com mísseis de longo alcance e do alerta da ONU sobre risco de fome; a segunda, devido ao sucesso da série Round 6, na Netflix —, a história em quadrinhos A Espera permite conhecer mais da turbulenta relação entre os dois países asiáticos. Escrita e desenhada pela sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, a obra foi lançada no Brasil neste ano, pela editora Pipoca & Nanquim (tradução de Young Jung Im, 252 páginas, R$ 69,90).
Keum Suk Gendry-Kim dedica-se a revisitar momentos históricos — e não raro trágicos — da Coreia do Sul pelo olhar de pessoas comuns que foram arrastadas para dentro do furacão. Duas de suas HQs já foram publicadas por aqui, ambas pela Pipoca & Nanquim. No ano passado, saiu Grama, sobre as mulheres que foram sexualmente escravizadas pelo exército japonês na primeira metade do século 20. A Espera retrata o drama das famílias separadas por causa da Guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953.
No esclarecedor posfácio, a autora define A Espera como "uma ficção, mas ao mesmo tempo é uma verdade baseada em fatos". A personagem principal é sua mãe, que, com sua mistura de resiliência e esperança, lembra a protagonista de Grama — a certa altura, afirma que "Quem é vivo tem que viver". Ela sofreu uma grande perda quando a guerra eclodiu, apartando Norte e Sul. Mas nunca desistiu de reencontrar o primogênito. É a esse drama em particular, representativo dos milhares e milhares de sul-coreanos e norte-coreanos inscritos nos programas destinados a reunir parentes — mesmo que momentaneamente —, que se refere o título da HQ.
Também como Grama, A Espera alterna passado e presente, reflexão e memória. Por conta das semelhanças, inclusive em relação aos episódios históricos, quem leu o primeiro pode, em alguns momentos do segundo, sentir um déjà vu. Por outro lado, esses pontos de contato dão consistência ao trabalho de resgate empreendido por Keum Suk Gendry-Kim. Suas HQs trazem o testemunho de uma geração que está morrendo — desaparecerão junto as lembranças penosas.
Desenhadas em um preto e branco sóbrio e de muito contraste, as obras da autora sul-coreana lutam contra o esquecimento, um dos graves crimes que uma nação pode cometer. Como enfatiza o excelente filme Quo Vadis, Aida? (2020), em que a cineasta bósnia Jamila Zbanic reconstitui o Massacre de Srebrenica, ocorrido em 1995, nunca podemos fechar os olhos para o passado, e a verdade é a única forma de lidar com os traumas deixados pelo derramamento de sangue. A Espera embaralha depoimentos e recordações de várias pessoas, mas faz um retrato honesto, contundente, emocionante e por vezes até poético dos horrores e das cicatrizes da guerra.