Lançado recentemente pela Quadrinhos na Cia. (selo da editora Companhia das Letras), Manual do Minotauro reúne mais de 1,5 mil tiras produzidas por Laerte. Todas foram publicadas pelo jornal Folha de S.Paulo entre 2004 e 2015, período em que a cartunista paulistana de 70 anos permitiu-se, como aponta o título, entrar em um labirinto sem levar qualquer tipo de pista para encontrar o caminho — ou um caminho.
Laerte conta que, na virada do milênio, sentiu chegar, “entre insegura e ouriçada”, a hora de explorar novas possibilidades. O modo como construía as tiras parecia esgotado. O primeiro passo foi abandonar as personagens com as quais trabalhava – na verdade, abandonar personagens como um todo. Ao longo das 400 e poucas páginas do volume, até surgem tipos com alguma recorrência, como a atriz Rakel, o próprio Minotauro, o Santo Recalcitrante e a Dona Ruth. Mas a autora dá preferência aos anônimos, a uma turma que, nas suas palavras, não venha com “um acervo próprio de características, gostos, manias, tiques”, limitando o espaço para a criação artística.
Livre, Laerte trilhou uma rota que nem sempre desemboca no tradicional arremate das tiras de humor. Ora envereda pelo abstrato, ora pelo absurdo, ora pela metalinguagem, ora pelo existencialismo, ora pelo lirismo.
Às vezes, Laerte combina o surreal com o cotidiano. Na última tira da página 23, por exemplo, um homem abre um pote e, ao constatar que está quase vazio, vai à janela para gritar: “Traz desculpas também! As nossas estão quase no fim!”.
Em outros momentos, a cartunista parece ilustrar a própria experiência de libertação, da desobrigação de contar uma piada. Na segunda tira da página 26, mostra um livro, depois um banheiro, no terceiro quadro retrata a Gestapo, e no quarto, uma mão espremendo pasta de dente em uma escova. Sob o desenho, há uma pergunta: “Significando opressão ou higiene?”. A resposta é “Ah, eu não interpreto, vou só associando”.
Falando nisso, algumas tiras são silenciosas e totalmente abertas à interpretação pelo leitor, como aquela da página 78 que dá um close em três tipos de janela. Em outras, o diálogo revela a genialidade de Laerte e seu olhar arguto para a alma humana.
— Você é prostituta? — pergunta um sujeito.
— A melhor – responde uma moça diminuta, da altura do joelho do seu interlocutor.
— O que você faz?
— Subo em você... Instalo-me junto a seu ouvido e falo: “Não foi sua culpa. Não foi sua culpa. Não foi sua culpa”.
Os cenários são os mais variados o possível: do galho de uma árvore a um país que acaba de instaurar a ditadura. Os temas também: os relacionamentos, a política (só que sem compromisso com a atualidade), a religião, a memória, nossas ilusões e nossas vaidades etc. E quem acompanha a biografia de Laerte perceberá como — ao contrário do que muitos acreditam — é impossível separar o artista da obra.
A guinada criativa espelhou as inquietações pessoais de Laerte. Em 2005, perdera um de seus três filhos, Diogo, então com 22 anos, em um acidente de carro. Mais ou menos à mesma época, começara o processo da transgeneridade de Laerte, trazida a público em uma entrevista concedida à revista Bravo no final de 2010. Consciente ou inconscientemente, a tragédia e a transformação inspiraram uma coleção de tiras.
A morte e a finitude têm uma certa assiduidade, e também são presentes personagens que lidam com questões de identidade, gênero e sexualidade.
Diz um texto na página 22. “Sempre fui uma garotinha tímida e desengonçada. Quando ia à praia, tinha vergonha de pôr maiô, ficava longe de todos. Hoje, no entanto, me consideram um empresário bem-sucedido”.
Na página 34, uma mulher acorda, entra por uma porta com a inscrição “HOMEM” e sai com corpo e vestuário masculino.
Na página 43, uma pessoa de quem só vemos a boca fala ao telefone: “Sim, sou hermafrodita, e hermafrodita verdadeiro: os dois sexos, completos, perfeitos. Eu poderia ter sido um marco na história da sexualidade, poderia ter sido o ícone de uma época, o símbolo de alguma coisa... É, poderia. Mas sei lá, fiquei na minha, o tempo foi passando... Hoje, sou só alguém muito velho”.
A página 46 exibe uma tira com ares confessionais, do xixi sentado — “a maior ousadia” — até o “claro desejo ao ver meu primo no banho”.
Duas páginas depois, acompanhamos uma mulher nua meditando e se transformando em homem, para depois voltar a ser mulher.
Na página ao lado, uma figura dentro de uma máquina clama: “Ei! Já estou quase na maturidade sexual! Preciso saber de qual sexo!”.