Com menos de 15 minutos pode-se perceber que A Cidade dos Piratas demorou mais de 25 anos entre sua ideia e a estreia, na quinta-feira (31). É como se o filme tivesse cinco começos, uns interessantes, outros menos, e não tarda a ficar claro que nem todas as tramas foram amarradas ou conversam entre si. Isso é consequência de um trabalho que, ao alongar-se no tempo previsto para sua produção, viu a ficção ser atropelada pela realidade: no meio do caminho, Laerte, o genial cartunista paulista que criara os Piratas do Tietê em 1983, passou a ser A genial cartunista paulista, agora renegando os filhos famigerados, por considerá-los "múmias machistas". O diretor gaúcho Otto Guerra (que nesse intervalo lançou outras duas animações, Wood e Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll, em 2006, e Até que a Sbórnia nos Separe, em 2014) e os roteiristas até que se viraram bem com esse contratempo, acrescentando à animação trechos metalinguísticos (em que o realizador aborda essa situação) e documentais (com depoimentos e entrevistas da própria Laerte). Mas, a despeito de uma série de momentos sublimes e de reflexões tanto sobre a vida íntima das pessoas quanto sobre a vida pública no Brasil, falta uma cola, uma coesão, fazendo da obra menos um longa-metragem e mais uma sucessão de esquetes intercalados.
O primeiro deles, que justifica o título do filme mas que, ao fim e ao cabo, é dispensável, acompanha o Capitão dos tais Piratas do Tietê, uma versão assumidamente estereotipada dos personagens do gênero, que singra mares urbanos, contemporâneos, surreais: nas águas polutas de São Paulo, surgirá o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935). Sua pegada existencialista ecoará nas duas mais belas, inventivas e envolventes tramas. Uma delas é sobre um político, Azevedo, do Partido Revolucionário Conservador, um sujeito consumido pela hipocrisia e obcecado por um minotauro. A outra é sobre um homem que se descobre feminino, Hugo – uma espécie de espelho de Laerte, cujo testemunho em programas de TV comandados por Antônio Abujamra e Marília Gabriela, entre outros, dialoga com os conflitos desses dois personagens.
— O negrume do medo surge ao nos vermos sem a proteção de uma dor que possa ser curada — afirma Laerte a certa altura.
Ela está falando de sua transição de gênero, trazida à tona em 2011, mas, à luz das histórias contadas em A Cidade dos Piratas, sua declaração permite interpretações variadas. Podemos ler como um comentário político ou como uma descrição dos processos pessoais de amadurecimento, por exemplo. E também ilustra um drama vivido pelo próprio Otto Guerra, que, em 2013, enfrentou um câncer de cólon, luta retratada na quinta narrativa do desenho animado. Essa passagem poderia cumprir o papel de liga entre todas as outras tramas, mas parece centrada demais no diretor, com um olhar autoindulgente para seu estilo anárquico, "porra louca". É o momento Otto e Meio — desculpe pelo trocadilho, Fellini.
Pensando bem, a aproximação com o cineasta italiano não é gratuita. Como A Cidade dos Piratas nos mostra, os quadrinhos de Laerte, não raro, são fellinianos, em sua coragem de experimentar na narrativa e de fundir o confessional ao fantástico, em sua mistura do doce com o amargo, em seu ouvido para os anseios existenciais e seu olhar para o ridículo da vida.
Pensando bem, parte 2, no fundo o longo tempo de produção também foi positivo para o filme. Se tivéssemos sido brindados apenas com uma história sobre os piratas desbocados e debochados, ficaríamos privados da poesia visual, das discussões filosóficas e das reflexões sobre temas bastante atuais, como identidade de gênero e a ascensão do conservadorismo. Se Otto tivesse permanecido na superfície do Tietê, ficaríamos privados dos voos altos da imaginação e da profundidade alcançada por Laerte em suas obras posteriores.