"Qual é o seu desejo?", perguntou um jornalista de TV à mãe de Jun Choi, personagem que dá título à terceira história em quadrinhos da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim publicada no Brasil.
Todas saíram pela mesma editora, a Pipoca & Nanquim, que repete aqui o elegante tratamento gráfico — "papel offset 90g, capa dura, sobrecapa macia e com verniz localizado, lombada redonda e fitilho de tecido, seguindo o mesmo padrão dos manhwas (as HQs do país localizado no Sudeste Asiático) anteriores", diz a descrição.
Jun (tradução de Yun Jung Im, 260 páginas, R$ 74,90) foi publicada originalmente em 2018, no meio de Grama (2017) e A Espera (2020). Serviu como uma espécie de hiato temático da autora nascida em 1971. Nas outras duas obras, Gendry-Kim dedica-se a revisitar momentos históricos — e trágicos — da Coreia do Sul pelo olhar de pessoas comuns que foram arrastadas para dentro do furacão. Grama é sobre as mulheres que foram sexualmente escravizadas pelo exército japonês na primeira metade do século 20. A Espera retrata o drama das famílias separadas por causa da Guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953.
Em Jun, ela deixa de lado o grande quadro da História, mas segue trabalhando com personagens reais e relatos pessoais, segue alternando os comentários críticos (em vez de militares e governantes, os alvos são a sociedade e o sistema educacional) com discursos de esperança e perseverança.
Também como em Grama e A Espera, Jun toma uma cena do presente como ponto de partida para uma viagem pelas lembranças. Gendry-Kim assume a memória e a voz de Yun-Seon, a irmã três anos mais moça de Jun Choi. Ele nasceu em 1990 e, com dois anos e meio, ainda não havia falado uma única palavra. Logo veio o diagnóstico: transtorno do espectro autista (TEA).
Por meio das recordações e da vivência de Yun-Seon com seu oppá (o termo que as sul-coreanas usam para se referir a um homem mais velho), a quadrinista conta uma história que deve ser comum a muitas famílias — somente no Brasil, estima-se em 2 milhões o número de pessoas com autismo.
Às dificuldades de comunicação e interação social somam-se o medo (ou até a vergonha) dos pais e o preconceito (e não raro o bullying) dos outros. Jun fazia ludoterapia e frequentava uma fonoaudióloga, mas sua família também tentava caminhos alternativos, como ossos de tigre em pó e um pastor com fama de milagreiro. Nada dava resultado, e o guri, quando estava em público, acabava atraindo olhares entre o espanto, a piedade e a reprovação. Na escola, uma professora insensível reclama — "Por que o colocaram logo na minha turma?" —, e o diretor é cruel ao determinar à mãe de Jun que troque o filho de colégio: se tivesse um neto assim, diz, "ele não pisaria fora de casa".
— Meu irmão se tornou um segredo secretíssimo da nossa família que não queríamos que ninguém descobrisse — descreve a irmã, ela própria bastante afetada por se sentir sempre em segundo plano ou por ser alvo de cobranças, um risco a que mesmo pais atenciosos estão sujeitos.
Mas Gendry-Kim não está interessada apenas em abordar o horror da exclusão social, a ignorância sobre o TEA e as fissuras familiares. A história em quadrinhos também valoriza o amor e a dedicação dos pais, a parceria que vai se formando entre os dois irmãos e o papel fundamental que a arte teve no desenvolvimento de Jun. Como era sensível a sons, foi ter aulas de pungmul, uma tradição do folclore coreano que alia dança e instrumentos musicais. Também se interessou pelo pansori, gênero musical que combina percussão a narrações faladas, partes entoadas e outras cantadas. Jun prosperou, se apresentando como cantor nas ruas e virando personagem de reportagens na televisão. Descobriu a música no farfalhar das árvores, no ruídos dos ventiladores e no barulho do metrô — e assim tornou-se um compositor, que, com sua dança do vento, contagia quem está por perto.
— É isso. Você está certo, oppá — pensa Yun-Seon. — Não vamos viver no inferno da angústia por antecipação, não vamos nos preocupar com o amanhã.
O amanhã nos remete à tal entrevista que os pais de Jun concederam a um jornalista de TV. Ao responder qual era o seu desejo, a mãe do personagem sintetizou em uma frase todos os cuidados e todas as preocupações que um filho autista pode despertar:
— Eu e o pai do Jun gostaríamos de uma única coisa: viver um dia a mais do que o Jun.