Os quadrinhos sobre paternidade ganharam um novo filho. Fala, Maria, do mexicano Bernardo Fernández, o Bef, vem se juntar a uma família que inclui desde comédias quase pastelão, como O Guia do Pai Sem Noção, do franco-canadense Guy Delisle, a dramas sobre luto, como Rosalie Lightning, do americano Tom Hart.
Seu parente mais próximo é Não Era Você que Eu Esperava, do francês Fabien Toulmé. Nessa obra, o autor desnuda seus sentimentos ao descobrir que Julia, sua segunda filha, nasceu com Down. Em Fala, Maria (editora Skript, tradução de Jotapê Martins, 150 páginas, R$ 69), Bef conta como é ser pai de uma menina autista.
A HQ mostra o processo de aprendizagem do autor, da negação à aceitação — à compreensão, nem sempre eficiente, de como funciona o mundo de sua primogênita, diagnosticada com o transtorno do espectro autista aos dois anos de idade. Com traços leves mas marcantes, cheio de espaço para a imaginação e a elocubração, Bef abre a porta de sua intimidade. Não se furta de abordar questões delicadas, como o divórcio, mas também espalha pelas páginas um olhar poético e, por que não?, otimista.
Com sua sinceridade e sua mão estendida para a inclusão, Bef também insere Fala, Maria em uma outra família: a dos quadrinhos que buscam gerar empatia, combater preconceitos e incentivar a inclusão. Entre essas obras, estão, por exemplo, Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa, premiada com o Jabuti da categoria, o mangá O Marido do Meu Irmão, a autobiografia A Surda Absurda e a corajosa Duplo Eu, sobre obesidade mórbida e depressão.
"Achei que seria muito útil, na época do diagnóstico, ter um livro semelhante"
Por WhatsApp, o quadrinista mexicano Bef, 48 anos, concedeu a seguinte entrevista a GZH sobre Fala, Maria:
Em que momento você decidiu que deveria contar sua história como pai de uma menina autista? E por quê?
Depois de passar pelo processo de luto, depois de receber o diagnóstico, conheci Miguel Gallardo, autor de María y Yo, outra história em quadrinhos sobre autismo. Logo depois, conheci Malko, cujo filho tem síndrome de Down e que escreveu outro livro maravilhoso sobre como educar alguém com deficiência intelectual. Certa vez, nós três nos encontramos em uma mesa sobre quadrinhos e deficiência (eu havia desenhado o quadrinho de duas páginas que vem no final de Fala, Maria). Lá, com eles, decidi que gostaria de compartilhar meu sentimento na hora de receber o diagnóstico. Achei que teria sido muito útil para mim ter um livro semelhante naquela época, e então decidi desenhá-lo.
Já há uma coleção de romances gráficos em que pais, após enfrentarem uma situação adversa, desnudam seus sentimentos, suas dores, suas vergonhas e suas alegrias. São os casos de Não Era Você que Eu Esperava, do francês Fabien Toulmé, de Rosalie Lightning, do americano Tom Hart, e agora de Fala, Maria, por exemplo. Fazer esses quadrinhos é uma espécie de terapia?
Claro. Em geral, o quadrinho autobiográfico é terapêutico. Porém, também te coloca em uma posição muito vulnerável. Mas com certeza cada página era como uma sessão de psicanálise.
Em uma passagem do livro, você descreve como imagina que sua filha processa a quantidade de estímulos à que é exposta. Hoje, isso ainda é um mistério para você?
Maria adquiriu habilidades verbais e de comunicação notáveis desde que publiquei o livro (hoje ela está na adolescência). Ela consegue comunicar o que sente e deseja, às vezes com grande veemência. No entanto, fico imaginando o tempo todo o que está acontecendo em sua cabecinha.
De que modo sua família, em especial, a própria Maria e a mãe dela, reagiram à ideia de fazer o livro e à obra em si?
Mostrei a Rebeca, a mãe de Maria, cada página que desenhava. Apesar disso, ela não ficou muito feliz com o resultado final, parecia-lhe que contava apenas a minha parte da história, o que lamento. Maria, que é muito meticulosa, tem um pudor em relação ao livro. Uma vez fui convidado pela sua escola para falar sobre meu trabalho com seus colegas — ela frequenta uma escola regular — e descobri que ela estava muito arrependida pela minha visita.
Você se arrisca a dar conselhos para pais que lidam com o autismo?
Não, deixo isso para os especialistas. Eu estritamente me permiti compartilhar meu testemunho como pai de uma menina que foi diagnosticada com autismo aos dois anos de idade. Acho que é o bastante.