Senna (2024), minissérie da Netflix protagonizada por Gabriel Leone e lançada nesta sexta-feira (29), comete um pecado comum a muitas produções biográficas: o de tentar acomodar todos os capítulos da vida e todas as facetas do personagem retratado. Mesmo que tenha seis episódios de uma hora cada, acaba sendo superficial em muitos momentos, pois prefere se concentrar na ação, ou seja, nas corridas de automobilismo que tornaram Ayrton Senna da Silva (1960-1994) um ídolo mundial do esporte — foi tricampeão de Fórmula 1, em 1988, 1990 e 1991 — e um herói do Brasil.
Na verdade, cada episódio dura menos de uma hora, porque uns 10, 12 minutos são apenas para os créditos, pois há um exército de pessoas envolvidas na recriação dos carros, dos figurinos e dos cenários e no trabalho de pós-produção. O making of de Senna, também já disponível na Netflix, dá alguns detalhes sobre a construção de 22 réplicas, a confecção dos macacões e a transformação de autódromos abandonados da Argentina e do Uruguai em pistas célebres, como a de Suzuka, no Japão, a de Ímola, na Itália, e a de Mônaco. A minissérie dirigida por Vicente Amorim (dos filmes Motorrad, A Divisão e A Princesa da Yakuza) e Júlia Rezende (da minissérie Todo Dia a Mesma Noite, sobre a boate Kiss, e do drama erótico A Porta ao Lado) também depende muito da ação de dublês, de trucagens práticas (como filmar closes dos atores principais no veículos dentro de um estúdio com telões de led para simular a iluminação solar ou as luzes de um túnel, por exemplo), de efeitos sonoros, da computação gráfica e do uso de trechos de provas históricas para colocar o espectador no ambiente da F1.
O ápice desse trabalho é a reconstituição, no segundo capítulo, do Grande Prêmio (GP) de Mônaco de 1984, realizado sob forte chuva. Estreante na F1 e piloto de uma equipe não muito competitiva, a Toleman, Senna demonstrou toda sua habilidade ao volante e chegou a ultrapassar a poderosa McLaren de Alain Prost — só não ganhou a corrida porque o regulamento atribuía a vitória a quem fosse o líder antes da bandeira vermelha que determina a interrupção da prova. Focado na passagem de Senna para a Fórmula 1, uma transição desafiadora tecnicamente, financeiramente e também pessoalmente, esse é, disparado, o melhor episódio da minissérie. Um triunfo artístico e técnico. Os demais ficam entre o mediano e o fraco.
O time de roteiristas encabeçado por Gustavo Bragança empregou uma estrutura clássica, para não dizer desgastada: a história começa no dia do último GP disputado por Ayrton Senna, o de San Marino, em 1º de maio de 1994, momentos antes do acidente que provocou sua morte. Um flashback nos leva à infância do piloto, aos tempos de kart em São Paulo e, depois, de Fórmula Ford na Inglaterra. Esse primeiro episódio causa uma má impressão, por causa do sobrevoo rápido e do prenúncio de pieguice — realçada pela trilha instrumental e pelas "cenas de povo".
Aliás, uma das derrapagens de Senna está na tentativa de ilustrar a popularidade do protagonista. A trama é pontuada por aparições de um mecânico (Christian Malheiros, de 7 Prisioneiros), de um dono de bar e de um menino, os três negros e moradores de bairro humilde, todos sem vida própria. A propósito, boa parte dos coadjuvantes são como postes. Na melhor das hipóteses, estão em cena para proferirem diálogos didáticos e expositivos — a minissérie não confia na capacidade de interpretação do espectador —, mas nunca aprofundados. Vide, no terceiro episódio, o papo genérico na beira da praia do narrador Galvão Bueno (Gabriel Louchard) com o piloto: "O povo lá no Brasil tá precisando de uma alegria, né? Puta que o pariu, vou te contar. Só porrada, meu amigo".
Os dois únicos personagens com desenvolvimento dramático são Alain Prost, o piloto francês que foi o grande rival de Senna, vivido por Matt Mella, e Xuxa Meneghel, a apresentadora de TV que foi um dos três grandes amores de Ayrton, encarnada pela gaúcha Pâmela Tomé, talvez na mais impressionante caracterização. O primeiro grande amor, Lílian de Vasconcellos Souza, com quem ele chegou a se casar na juventude, é interpretada por Alice Wegmann. O último grande amor, a então modelo Adriane Galisteu, que depois também comandou programas televisivos, tem uma participação discretíssima (na pele de Julia Foti), por causa da antipatia que a família Senna nutre por ela.
Por falar em desafeto, a minissérie dá uma senhora curva no histórico duelo fora das pistas entre Ayrton Senna e Nelson Piquet, outro brasileiro tricampeão de F1 (1981, 1983 e 1987), hoje com 72 anos. Em dezembro de 1986, Senna foi entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, e disse sobre Piquet:
— Olha, eu diria que a gente, talvez, tenha apenas uma coisa em comum, que é ser piloto de Fórmula 1 e gostar de automobilismo. Fora isso, eu acho que nós temos ideias, criação e educação totalmente diferentes. Então a gente diverge no resto. Mas como piloto eu o respeito muito e como pessoa eu tenho as minhas restrições.
Nelson Piquet já fez comentários homofóbicos sobre Senna, piadas sobre sua morte e críticas à atuação como piloto. Em 2015, declarou ao Blog do Ico que "ele sempre foi muito sujo na sua carreira", citando as vezes em que o compatriota bateu nos carros de Martin Brundle, na F3, e no de Prost, na F1. Na minissérie, encarnado por Hugo Bonemer, Piquet mal abre a boca.
Quem tem voz demais é uma personagem fictícia, Laura Harrison (interpretada por Kaya Scodelario), uma repórter que serve para representar a relação de Ayrton Senna com a imprensa. Meu colega Carlos Redel resumiu bem: seu papel tem um grande tempo de tela e vira um enxerto desnecessário, "com falas que tentam ser sagazes, misturando admiração e veneno, mas que se tornam apenas chatas".
O que sustenta Senna é o desempenho de Gabriel Leone. O ator carioca de 31 anos realmente se entregou ao personagem. Como ele disse em entrevista ao Redel, mais importante do que buscar a semelhança física com Senna foi encontrar "a parte interna dele, a essência do Ayrton". A gente vê sua determinação, sua teimosia, a gana de pilotar e de vencer que não raro nublou suas relações pessoais e o fez assumir riscos. Muito por causa de Leone, a minissérie cumpre o papel de mostrar quem foi Ayrton Senna. Mas falha em mostrar como ele se tornou um herói.
Falta contextualização. Um aspecto mal explorado é de ordem técnica: Senna era canhoto. Em texto publicado no GloboEsporte.com em 2019, por ocasião dos 25 anos da morte de Ayrton, o jornalista Livio Oricchio, com a experiência de três décadas cobrindo a F1, comentou: "Ao tirar a mão direita do volante para trocar de marcha, a que permanecia era a esquerda, a sua melhor, a que lhe dava maior possibilidade de ser preciso. A direita estava na alavanca de câmbio. Em curvas onde o piloto trocava de marchas durante o seu contorno, é bem possível que isso representasse uma vantagem em relação aos pilotos destros, pois nestes a mão que permanecia no volante era a esquerda, a de menor habilidade, como regra".
Senna entendia de marketing. A minissérie até retrata a aproximação do piloto com o fotógrafo inglês Keith Sutton, que foi seu assessor de imprensa entre 1981 e 1984 (e depois continuou acompanhando o amigo), mas não dá conta de como o envio de comunicados a jornais e revistas e o gerenciamento da correspondência dos fãs contribuíram para a construção de sua imagem pública e da idolatria. A amizade com Galvão Bueno está contemplada, mas não é pela minissérie que o espectador entenderá o que significava ser apadrinhado pelo principal locutor da maior empresa de TV do país.
Senna não foi o primeiro nem o segundo brasileiro campeão de Fórmula 1. Emerson Fittipaldi já havia vencido duas vezes, em 1972 e 1974, e Nelson Piquet conquistou dois dos seus três títulos antes da estreia de Ayrton na categoria. Mas Senna foi o piloto certo na hora certa, o que fica menos do que sugerido na minissérie. Despontou no fim da ditadura militar (1964-1985) e no início do processo de redemocratização, quando juventude — ele tinha 20 e poucos anos, Piquet já era um trintão — e esperança eram palavras-chave no Brasil. Surgiu nas pistas em um período de frustração nacional com o esporte favorito, o futebol: o Tri no México já era uma memória distante, e a chamada Tragédia do Sarriá, na Copa de 1982, ainda doía bastante.
Senna correu por seus contemporâneos, mas também à frente de seu tempo. No cockpit de uma equipe pequena, mas lutando de igual para igual com os carros das grandes, simbolizava os anseios de um país continental oprimido pela inflação (que chegou a 223% em 1984) e pelo arrocho salarial. Duas décadas antes de uma campanha publicitária que visava recuperar a autoestima da população, lançada em 2004 pela Associação Brasileira de Anunciantes com apoio do governo federal, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, Ayrton Senna encarnou como poucos o lema "Sou brasileiro e não desisto nunca". A morte precoce em 1994, aos 34 anos, quando ainda estava no auge da carreira (foi campeão em 1990 e 1991 e vice em 1993), concedeu ao piloto a eternidade.
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