Nos 10 anos do incêndio que matou 242 jovens na boate Kiss, em Santa Maria, a Netflix lançou a minissérie Todo Dia a Mesma Noite, adaptação do livro homônimo publicado pela jornalista Daniela Arbex em 2018. Como se trata de uma versão ficcional, uma dramatização com atores e as chamadas liberdades artísticas — incluindo a mudança de nome dos personagens e da banda que, durante seu show na casa noturna, deu início à tragédia (a Gurizada Fandangueira virou Guapos Baladeiros) —, a produção virou alvo de queixas antes mesmo de estrear. Seria uma exploração do sofrimento em nome do entretenimento?
Em entrevistas, Arbex e a diretora geral da minissérie, Júlia Rezende — responsável pelas comédias da TV e do cinema Meu Passado me Condena (2012-2015) e pela série de drama e romance Coisa Mais Linda (2019-2020) —, vêm ressaltando que foram muito "cuidadosas" na hora de decidir o quê e como mostrar e afirmando a importância de não esquecer.
— Não falar é o que causa dor. Não falar é que permite que outras tragédias como essa aconteçam no Brasil — diz Arbex.
Sobrevivente da Kiss, a terapeuta ocupacional Kelen Ferreira, que teve 18% do corpo queimado e o pé direito amputado, faz coro.
— A história precisa ser contada para que as pessoas não esqueçam e para que não aconteça novamente — disse em entrevista à Rádio Gaúcha Kelen, 26 anos, que inspira a personagem Grazi, interpretada pela atriz e modelo mineira Paola Antonini (ela também vítima de uma amputação: perdeu a perna esquerda após ser atropelada por uma motorista embriagada).
A prática está afinada com o discurso. Não é que Todo Dia a Mesma Noite abra mão de cenas fortes, música sentimental, choro e desespero — afinal, estamos diante de uma das cinco grandes tragédias da história do Brasil e do terceiro maior desastre em casas noturnas no mundo. Mas percebe-se, nos seus cinco episódios, um respeito na abordagem, a começar pela decisão de não gravar em Santa Maria — a cidade aparece apenas em imagens aéreas. Tirando algumas locações em Bagé e Porto Alegre, os cenários foram montados fora do Rio Grande do Sul. Aliás, a maioria do elenco não é gaúcha, mas os atores e as atrizes passaram por um trabalho de prosódia para incorporar regionalismos — que não raro soam deslocados, forçados, exagerados.
O grande acerto é evitar fazer do incêndio um clímax — na verdade, é um ponto de partida. O foco está nos pais das vítimas, na sua negação (diante de um horror que vai contra a ordem natural), no seu luto, na sua indignação e na sua busca por responsabilização e justiça.
Precedendo a reconstituição sóbria, talvez discreta demais (a ficção não consegue dar a dimensão da superlotação na boate santa-mariense) daquela madrugada de 27 de janeiro de 2013, a minissérie escrita por Gustavo Lipsztein — do filme O Paciente: O Caso Tancredo Neves (2018) e cocriador do seriado policial 1 Contra Todos (2016-2020) — apresenta as famílias dos principais personagens. A primeiríssima imagem pode gerar controvérsia, mas valorizo a audácia e a pertinência: ao mostrar o acender de uma vela tipo fogos de artifício, Todo Dia a Mesma Noite nos lembra como, antes da Kiss, esses elementos estavam mais associados a momentos de alegria, desejos e comemoração. É o aniversário de 20 anos de Marienne, a Mari (Manu Morelli, de Onde Está meu Coração?), filha de um casal simples, Pedro (Thelmo Fernandes, o capitão Botelho de Sob Pressão) e Sil (Débora Lamm, a Miranda de Amor de Mãe), os dois preocupados com o futuro da garota, que ainda não conseguiu passar no vestibular. No dia seguinte, ela sai com as amigas para a fatídica noitada.
Outros núcleos de destaque são o de Marco (Sandro Aliprandini), o afetivo primogênito de Ricardo (Paulo Gorgulho) e Lívia (Raquel Karro); o sedutor Felipinho (Miguel Roncato), filho de Ana (Bianca Biyngton), uma fazendeira; e o viajante Guilherme (Luan Vieira), cujos pais, Geraldo (Leonardo Medeiros) e Telma (Bel Kowarick), moram em São Paulo. Junto a Pedro e Sil, todos farão parte da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
Todos vão fazer o luto, velar e enterrar seus filhos em uma sequência tão bela quanto lancinante, embalada pela sublime música Sentinela (1969), de Milton Nascimento, na regravação de 1980, que conta com a participação especial de Nana Caymmi para a interpretação de versos como: "Longe, longe, ouço essa voz / Que o tempo não vai levar / Morte, vela, sentinela sou / Do corpo desse meu irmão que já se vai / Revejo nessa hora tudo que ocorreu / Memória não morrerá".
Quando esses personagens não estão em cena, ou quando precisam contracenar com a turma da polícia ou do Ministério Público, transparecem dois problemas de Todo Dia a Mesma Noite: a irregularidade do elenco (e da direção de cenas) e o didatismo do texto. De forma bastante prejudicial ao ritmo e à fluidez da minissérie, esse didatismo combina-se à necessidade de comprimir em apenas cinco episódios os 10 anos que se passaram desde o incêndio, com uma gama de personagens — as vítimas e seus familiares, os donos da boate e os músicos da banda, os bombeiros e os médicos, os policiais e os advogados, os promotores e os juízes — e todos os desdobramentos na Justiça (a propósito, uma década depois, ninguém está preso: os réus foram julgados em dezembro de 2021 e condenados, mas em em agosto de 2022 o júri foi anulado, e a data do novo julgamento ainda não foi marcada). Nos capítulos finais, a pressa salta aos olhos.
Entretanto, o epílogo reserva tempo suficiente para mais um potente monólogo de Pedro, talvez o personagem de maior destaque. Já havia cabido a ele, no terceiro episódio, em uma reunião na associação, fazer as perguntas que ilustram a coleção de erros e negligências que culminou na morte de 242 jovens:
— O que eu quero saber é por que nós tá aqui? Mas, bah, porque nossos filhos morreram. Mas por que nossos filhos morreram? O artefato pegou fogo na espuma, o gás envenenou. Mas por quê? Quem comprou? Quem autorizou? Quem vistoriou? Quem deixou nosso filho entrar?
No último capítulo, o palco é o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Em discussão, um recurso para que os quatro réus (os dois donos da boate e dois integrantes da banda que soltou os fogos de artifício) fossem a júri popular — ou seja, se o crime foi doloso. Pedro quebra o protocolo ao se levantar da plateia para fazer um discurso em que sintetiza a história de descaso, ganância e impunidade do país:
— Se um carro derrapa na chuva e bate no outro, é acidente. Mas se um motorista bebe uma garrafa de cana e atropela um pedestre, ele assumiu esse risco. Se um barco vira no mar bravio, é um acidente. Mas quando o dono do Bateau Mouche (em dezembro de 1988) coloca 142 pessoas num barco que tem capacidade para 62, e ele naufraga por excesso de carga, não tem salva-vidas e 55 pessoas morrem, ele assumiu esse risco. Se chove e há um deslizamento, é um acidente. Mas quando o executivo coloca um restaurante no caminho da barragem de Brumadinho, sabendo que tá no caminho da barragem, ela rompe (em janeiro de 2019) e mata todos que estavam dentro, ele assumiu esse risco! Se um dirigente do Flamengo recebe um relatório de alta relevância e grande risco sobre um quadro elétrico num contêiner, e mesmo assim coloca jovens pra dormir no contêiner, há um curto, o contêiner pega fogo e 10 garotos morrem (em fevereiro de 2019), ele assumiu esse risco! Quando um dono de boate superlota essa boate, sem saídas de emergência, sem extintores, com barras de metal impedindo a saída, com espuma tóxica no teto, e, mesmo assim, permite um show pirotécnico... Ou quando um músico de uma banda compra um fogo de artifício de uso externo porque é mais barato, usa dentro da boate, vê que o teto tá pegando fogo e, com o microfone na mão... na mão..., não avisa ninguém dentro da boate, ele assumiu o risco.