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Em 2019, a cada sete horas, em média, uma mulher foi morta no Brasil justamente pelo fato de ser mulher. Somente em março e abril de 2020, durante o início do isolamento social provocado pelo coronavírus, os crimes de ódio contra mulheres cresceram 22,2% no país e as denúncias pelo telefone 180 saltaram 34%*.
No final dos anos 1950 e início da década de 60, período em que se passa a série nacional Coisa Mais Linda, as estatísticas, os canais de ajuda e a própria definição de feminicídio nem existiam - isso não significa que não era um problema na época. A segunda temporada da produção brasileira estreia nesta sexta-feira (19) na Netflix reforçando o quão grave e atemporal é o assunto, mas também exaltando a união das mulheres, o que hoje conhecemos pela palavra sororidade.
A força feminina
GaúchaZH teve acesso aos primeiros quatro dos seis novos episódios do seriado. Logo de cara, o telespectador irá acompanhar a morte de uma importante personagem da trama. Será o desenrolar dos acontecimentos que marcaram o último episódio da primeira temporada, quando Malu (Maria Casadevall) e Lígia (Fernanda Vasconcellos) são baleadas pelo machista Augusto (Gustavo Vaz).
Apesar de ficar chocada com a perda, eu já esperava que isso fosse acontecer. A mesma sensação teve Maria Casadevall, que considera a morte necessária, mas não o suficiente para dar a completa dimensão do problema.
—A prova é esse índice cada dia maior de feminicídios, ainda mais nesse momento de quarentena. A estrutura continua reproduzindo esse tipo de comportamento. Habitando esse corpo mulher, a gente vive esse medo constante, cada uma em um contexto diferente, mas sempre à espera de uma ação de violência que venha compensar uma ação de emancipação —avaliou atriz, em entrevista coletiva virtual.
Sua personagem, a destemida Malu, teve um processo de ascensão e conquistas na primeira temporada, ao abrir um clube de bossa nova batizado com o nome da série. Agora, vê sua jornada congelada pela tragédia, ao mesmo tempo em que passará por poucas e boas na administração do estabelecimento. Apesar de a história central girar em torno de Malu, Maria acredita que o crescimento individual das mulheres da série vem através da união entre elas.
— O empoderamento é uma palavra que já está virando quase um clichê e sendo apropriada pelo sistema. Parece que é um movimento particular. Para mim, Maria, essa palavra faz mais sentido quando é colocada na perspectiva do coletivo. Se tem um fato que desencadeou e fez com que ela (Malu) pudesse seguir esses instintos naturais de liberdade, de autonomia, foi o encontro com essas outras mulheres — concluiu a atriz.
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As outras personagens da trama são a sócia de Malu, Adélia (Pathy Dejesus), a irmã desta, Ivone (Larissa Nunes), e a jornalista Thereza (Mel Lisboa). Na segunda temporada, a série ganha corpo ao discutir assuntos relacionados aos negros e sua luta por espaço na sociedade, além de pautar como os privilégios de raça e de classe social afetam a vida das personagens.
— É de extrema importância essa representatividade. Se você não se enxerga, você não existe. Eu estou muito feliz com a série porque existe um núcleo negro, com personagens construídos, fortes, não apenas figurantes. Que isso nos traga reflexão também — falou Pathy Dejesus, comentando que Coisa Mais Linda proporcionou a ela o primeiro papel como protagonista, mesmo tendo 27 anos de vida artística, 10 deles como atriz.
O tema ficará bem visível por meio da jovem e sonhadora Ivone, que precisará provar seu talento como cantora para a indústria fonográfica da época. Antes, porém, possui outro desafio. Negra e moradora da periferia, Ivone fala, em uma das cenas, que teme largar o emprego em um escritório para investir na carreira artística, por ser a "primeira pessoa da família a trabalhar em frente a uma máquina de escrever" - em oposição ao perfil da personagem Malu, que é branca, de classe alta e não precisou ter medo do futuro ao decidir largar a família para virar dona de um bar de música.
— Essa frase é muito interessante porque Ivone tem noção do lugar que conquistou e a responsabilidade que é manter-se no trabalho. Ao longo dessa temporada, a gente vai ter uma atualização dos temas racismo e privilégio. Vamos poder ter uma outra visão, de uma mulher negra, dizendo quais são suas fragilidades e como isso a afeta internamente — comentou Larissa Nunes.
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Mulheres e o trabalho
Desde a primeira temporada, a personagem da gaúcha Mel Lisboa sempre foi à frente do seu tempo: independente do marido, abertamente feminista e bissexual. Agora, no novo ano de Coisa Mais Linda, Thereza irá endossar a busca da mulher por mais espaço nos ambientes de trabalho atuando como jornalista em uma rádio - local que, na década de 60, era dominado por homens.
— É um meio de comunicação em que você fala pra muita gente e onde a mulher não tem voz. Ela está em uma rádio, dando uma notícia, expressando sua opinião. E isso acredito que seja bem ficcional para a época da série. Hoje em dia, é mais possível — afirmou Mel, comemorando a evolução das mulheres no mercado de trabalho ao longo dos anos.
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Coisa Mais Linda até pode pecar pela sua estrutura narrativa, que, por vezes, lembra a de uma novela (em algumas partes, a série avança com muita rapidez e pouca explicação sobre como os problemas são resolvidos). Mas não podemos negar que o seriado nacional merece ser exaltado no quesito da representatividade. Além de tocar em temas espinhosos e atuais, a produção também ampliou a presença feminina atrás das câmeras: atentem para o quarto episódio, escrito e dirigido apenas por mulheres.
*Fontes: Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Monitor da Violência, parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).