Não deixar que a tragédia da Boate Kiss, que ocorreu há 10 anos, caia no esquecimento. Este é o principal objetivo defendido pelos envolvidos na produção da minissérie Todo Dia a Mesma Noite, que adapta o livro homônimo da jornalista Daniela Arbex e estreou na Netflix nesta quarta-feira (25). Com a exposição, espera-se uma pressão por justiça — o incêndio ocorreu em 27 de janeiro de 2013 e, neste momento, nenhum responsável está preso.
No livro da jornalista, porém, a história da jovem Kelen Ferreira, que teve 18% do corpo queimado e perdeu o perdeu pé direito no incêndio, fazendo-a usar uma prótese, não é contada, por opção da própria vítima. Para a série, no entanto, ela falou para a Rádio Gaúcha que decidiu compartilhar com o mundo a sua trajetória de luta ao longo da última década, como forma de conscientização.
— Acho que a gente precisa falar sobre o que aconteceu. Sou uma das sobreviventes que ficou mais danificada fisicamente. Além das sequelas e das queimaduras, perdi um pé. Então, a história precisa ser contada para que as pessoas saibam da realidade, para entenderem tudo o que aconteceu — explica Kelen, que hoje é terapeuta ocupacional em Pelotas.
Na série da Netflix, a vítima da Boate Kiss é representada por Grazi, interpretada pela modelo Paola Antonini, que faz a sua estreia como atriz — ela, assim como Kelen, também é amputada. Na produção, a personagem é mineira, para dar a dimensão de que Santa Maria abrigava pessoas de diversos locais, e também compila as histórias de outros sobreviventes da tragédia, para conseguir mostrar vários pontos importantes da trajetória de quem vivenciou os dramas daquele incêndio.
— Houve uma inspiração muito grande nela (na Kelen), mas também foi uma mistura de outros personagens. Eu peguei várias inspirações do livro, conversas com a Daniela (Arbex), que teve contato com os sobreviventes — diz Paola, que ainda explicou que, apesar de não ter tido contato direto com Kelen para a construção de sua personagem, estudou o caso e acompanhou o julgamento.
Para a sobrevivente da Boate Kiss, que conheceu Paola na última semana, quando esta esteve em Santa Maria, o encontro foi um momento importante, pois ela já se identificava com a modelo:
— Eu fiquei muito feliz de conhecer a Paola. Já acompanhava ela nas redes sociais desde que ela apareceu no programa da Fátima (Bernardes), em 2015 ou 2014, se não me engano. E ela me ajudou muito neste processo de aceitação com o próprio corpo. Então, conhecer ela e ser bem acolhida foi muito importante.
Uma década
Nos cinco episódios da minissérie, Grazi, personagem que representa Kelen, precisa se adaptar a sua nova realidade, com a ausência de seu pé, cicatrizes pelo corpo, além das dores física e psicológica. A personagem, então, sofre ao tentar se reconectar com a sociedade e aceitar a sua nova aparência, enquanto pessoas próximas se afastam e uma nova rede de amizade surge.
Para Kelen, o mês de janeiro é complicado de viver, porque todas as lembranças da tragédia retornam, e o seu coração aperta — neste ano, a intensidade está ainda maior, devido ao lançamento da série. Além desta produção, há um documentário conduzido por Marcelo Canellas no Globoplay, que estreia na quinta-feira (26).
— Mas a história precisa ser contada para que as pessoas não esqueçam tudo que aconteceu há 10 anos e para que não aconteça novamente. Nós não queremos que as pessoas passem pelo o que nós passamos — disse a sobrevivente. — É preciso que as pessoas olhem e se coloquem no nosso lugar.
Em um press day, promovido pela Netflix no dia 19 de janeiro, a reportagem de GZH esteve em São Paulo e também conversou com Paola Antonini. A atriz explicou que, para viver a personagem, foi preciso de muita responsabilidade e sustentar uma carga emocional muito grande.
— Acho muito importante a série mostrar o que aconteceu, lembrar para todo mundo, falar sobre justiça, sobre os erros. Isso é muito importante porque, como artista, uma história tão importante, tão relevante como essa, você pode até se perder, mas tem uma linha de condução e, então, ela está exercendo uma função social. A memória precisa ficar viva, as pessoas precisam conhecer essas histórias, entender os erros, as irregularidades. E, 10 anos depois, a justiça ainda não foi feita — destaca a intérprete de Grazi.