Assisti ontem aos dois primeiros capítulos da série da boate Kiss, inspirada no livro de Daniela Arbex e disponível na Netflix. Não antes sem refletir sobre a decisão. Meu marido insistiu duas vezes:
— Tu está grávida. Tem certeza que quer ver?
E a ponderação fazia todo sentido. Estou entrando no nono mês de gestação e a mistura de hormônios com a ansiedade sobre a chegada do bebê impactam não somente minha lombar, mas também os sentimentos, elevados à décima potência. Ele sabia o que estava por vir e tentou me proteger. Fez bem. Mas eu achava importante por conta do meu trabalho e assim segui.
Foram dois capítulos somente porque não dei conta, naquela noite, de assistir aos demais.
E, neste espaço, não vou me deter aos detalhes técnicos e específicos de roteiro e direção. Primeiro, porque não são minha especialidade. Esses deixo com meu competente amigo Ticiano Osório, colunista de GZH. Segundo, porque quero falar das famílias. E sobre a emoção que toma conta de quem assiste, quando você se coloca no lugar de quem ficou.
É dilacerante. Foi a palavra que encontrei para descrever.
Assistir ao desespero dos familiares é de partir o coração por inteiro. O pai que não tem forças para ir ao ginásio diante da possibilidade de ver o corpo do filho morto. Eram muitos corpos. Enfileirados. O processo de reconhecimento incluía passar por todos aqueles meninos e meninas deitados, em busca de algo que não se quer encontrar.
A mãe — de onde vem a força das mães? — que sacode o marido e o traz de volta à realidade, quando percebe que a filha não está sendo atendida nos hospitais. Era provável que estivesse morta. E estava. O médico que, no meio do atendimento de centenas de feridos, é chamado porque o seu filho também estava na boate. Os celulares que tocam sem parar com chamadas com "mãe", "pai", "mana", "mano". É dilacerante.
Em uma das cenas, a personagem vivida pela atriz Débora Lamm está com o marido e a filha à procura da outra filha, mais velha, que havia ido comemorar o aniversário naquela noite na Kiss. Eram centenas de familiares e havia mais a presença de médicos, policiais, autoridades. Um tumulto desesperador. A cena passaria despercebida se não fosse uma frase dita por ela à filha que restava ali, viva.
— Filha, tu não desgruda da mão da mãe.
Essa frase ficou ecoando na minha cabeça. Eu me vi ali. É como se mãe, na iminência da descoberta de que uma filha havia partido, estabelecesse um pacto com a outra: não desgruda. Fica aqui. Eu não suportaria perder (também) você.
Aqui um parêntese. No início da gravidez, minha amiga Shana Müller me disse que depois que a gente tem filhos, o olhar sobre cada episódio, do mais simples ao mais complexo, muda para "e se fosse com o meu filho". Será sempre assim.
Você chora (mais) ao ler uma notícia sobre crianças desamparadas, sobre crianças violentadas ou mesmo mortas dentro de casa, você desaba diante do pedido de uma menina ou de um menino no semáforo. É impossível. O olhar volta pra dentro. E se fosse o meu filho? Você nunca mais vai conseguir olhar — nem sentir — da mesma maneira.
A cena da mãe com a filha subindo em direção à entrada do ginásio está até agora comigo. Pensei no meu filho que ainda nem nasceu. E fico repetindo: não desgruda da minha mão. Fica. Eu não suportaria perdê-lo.
Aos pais e mães daqueles meninos, eu fecho os olhos e ainda assim sei que a dor não deve chegar a um décimo daquilo que vocês sentem. Todos os dias. Há exatos 10 anos. Eu rezo e peço por alguma resposta a essa dor. De fato, não há como esperar mais.
Falhamos. Muito. É urgente que o poder público responda aos anseios por Justiça. A ausência de um julgamento e responsabilização dos culpados denota desprezo pela dor dilacerante de 242 famílias que não podem mais segurar a mão dos seus filhos.