Maria Aparecida Neves já lutava para ser mãe de Augusto bem antes de o menino vir ao mundo. Sem poder gerar uma criança, estava determinada pela adoção. Em setembro de 1993, conseguiu concretizar o sonho. Com sete dias de vida, o garoto franzino foi levado para casa nos braços dela. Dezenove anos depois, em 27 de janeiro de 2013, uma tragédia deu fim à vida do jovem. O universitário se tornou um dos 242 a morrerem no incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria. Maria Aparecida, a dona Cida, não parou de lutar por Augusto. Ao longo de uma década, equilibra-se entre a devastação do luto e a batalha por justiça.
Um quadro que pende na parede da sala é a primeira imagem vista por quem ingressa na casa dela, no bairro Divina, em Santa Maria. Nele, Augusto aparece sorridente, de toga, num registro feito quando concluiu o Ensino Médio. Depois dali, o jovem começou a cursar Ciência da Computação e, em 2013, deveria ter iniciado o terceiro semestre na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mas isso nunca aconteceu.
Alguns passos adiante, fotografias do rapaz em diferentes fases da vida estão em porta-retratos sobre escrivaninha na qual ele usava o computador. Ao lado, a porta aberta leva ao quarto, que permanece praticamente intacto há 10 anos. Ali dentro, é como se o tempo tivesse parado. A guitarra, que ele comprou com o primeiro salário do estágio e mal teve tempo de usar, descansa sobre a cama ao lado do violão, presente dado por dona Cida.
Vez que outra os pais repousam na mesma cama que Augusto, em busca de algum refúgio. O pai, Cezar Augusto, que deu ao filho o próprio nome, abre as gavetas e revira as fotos e lembranças. Diferentemente da esposa, o pintor mergulhou no silêncio do luto. Não costuma falar sobre a perda, e muito menos sobre o pior dia de sua vida, quando precisou buscar pelo filho de 19 anos no Centro Desportivo Municipal, o ginásio Farrezão, para onde eram levados os mortos na tragédia.
O incêndio
Em 26 de janeiro de 2013, dona Cida proferiu pela última vez em voz alta:
— Estou bem, estou feliz.
Evangélica, a dona de casa conversava com Deus, após sentir uma angústia repentina. Não compreendia por que lhe apertava o peito e as lágrimas brotavam sem razão se sua família estava bem: o marido empregado, e o filho cursando faculdade e trabalhando. Não havia motivos para tristeza, indagava-se.
Fazia um calor exaustivo naquele dia em Santa Maria, e ela cogitou não fazer almoço. Avisou o filho, que estava no quarto, mas mudou de ideia logo depois.
— Fiz o que ele gostava de comer: bife, batata frita e arroz — lembra dona Cida.
Ao sentar para almoçar, a mãe disse saber que Augusto sairia à noite. Era a segunda vez que o universitário iria à Boate Kiss — a primeira tinha sido no começo daquele mês.
— Já sei o que vai me dizer: que não é para beber, não é para fumar, não é para ficar na frente quando terminar, é para pegar um táxi e vir embora. Mãe, bota uma coisa na tua cabeça, ninguém faz minha cabeça para fumar e beber. Eu não gosto — disse o filho, buscando tranquilizá-la.
Contrariada, reiterou que não gostava que o filho fosse à Kiss, mas preferiu terminar o assunto. Ao contrário da mãe, o jovem estava alegre.
— Mãe, eu tô tão feliz hoje — confidenciou, sorrindo enquanto ela limpava a cozinha.
À noite, o pai ajudou a escolher a roupa do filho — camiseta polo e calça jeans — e o levou até o portão. Orientou Augusto que, caso acontecesse algo, era só ligar. Os dois se despediram, e o filho seguiu para embarcar no ônibus. Na boate, a cerca de 2,5 quilômetros de casa, na área central de Santa Maria, encontraria um amigo, que também estudava na UFSM. A festa realizada naquela noite, chamada "Agromerados", reunia acadêmicos da universidade.
Dona Cida continuava inquieta, e revirava-se na cama a cada carro se aproximando. Quando o telefone tocou, pensou que fosse o filho, mas era uma amiga de Augusto.
— A Kiss pegou fogo — disse a jovem, levando a mãe de Augusto a saltar da cama.
Na ligação, ela explicou que o fogo havia se iniciado a partir de um artefato pirotécnico aceso por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira. As faíscas atingiram o teto e as chamas se espalharam rapidamente, causando pânico na boate superlotada. Muitos, como a jovem, precisaram vencer um verdadeiro labirinto para conseguir sair da casa noturna, pelo único acesso. Outros não conseguiram.
— E o Augusto? — perguntou a mãe.
— Eles estavam mais perto da porta do que eu. Mas ligo para eles e não me atendem — respondeu a amiga.
De táxi, os pais seguiram até as proximidades da Kiss, onde encontraram um cenário de terror. Aquele trecho da Rua dos Andradas estava tomado de ambulâncias, viaturas e pessoas que corriam para um lado e para o outro, desatinadas. Jovens desabavam na calçada aos prantos, sem conseguir encontrar amigos e parentes, prevendo o pior.
Os familiares tentavam se aproximar da boate, isolada. Nos arredores, sentiam o cheiro da fumaça, que ardia quando alcançava a garganta, e imploravam para passar pelas barreiras policiais. Dona Cida suplicava para ver os feridos no estacionamento de um supermercado — não sabia que lá estavam os corpos das vítimas que não tinham sobrevivido. Foram orientados a seguir até os hospitais, em busca dos parentes.
— Mas em qual hospital eu vou? — indagou dona Cida a um policial, sem dimensionar a tragédia.
— Todos, minha senhora. Estão indo para todos.
A partir dali, passaram horas numa corrida entre um hospital e outro, tentando localizar Augusto nas listas de feridos. Ao mesmo tempo, seguiam ligando para o jovem, buscando contato com conhecidos. Ao amanhecer, em desespero, no pronto-socorro, a mãe não acreditou na negativa da funcionária e avançou sobre o papel. Percorreu cada nome, determinada a encontrar o de Augusto. Não estava lá.
A dona de casa seguia convicta de que encontraria o jovem. Mesmo quando era abraçada por familiares em prantos, não esmorecia. Chegou a se convencer de que o filho poderia estar em casa e rumou para a residência. Revirou todos os cantos da casa, num desespero crescente. Quando entrou no quarto, não viu nenhum sinal dele.
— Era a minha esperança. Aí me desesperei — relembra dona Cida.
Retornou então para o Hospital de Caridade, onde havia feridos em atendimento — ao todo, foram 636. Ouvia gritos de desespero de amigos, pais, irmãos, namorados, amparados quando não conseguiam suportar a notícia da perda precoce. Reconheceu uma vizinha entre os que aguardavam por notícias. Mais tarde, descobriria que ela havia perdido o filho, amigo de infância de Augusto. As horas avançavam, mas a mãe se recusava a ir até o ginásio, destino dos mortos, e tentava dissuadir o marido. Não queria crer nessa possibilidade. Após a leitura da última lista de feridos, ouviu o aviso:
Não acredito que isso aconteceu comigo, e que não tenho mais meu filho. Não aceito, vou morrer e não vou aceitar.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
— Se não encontraram os filhos de vocês, sinto muito, mas se dirijam ao Farrezão.
Dona Cida desabou sobre a calçada do hospital, sem forças, mas não arredou o pé dali. No início da tarde, avistou o marido se aproximando, com outros familiares, chorando.
— Infelizmente, perdemos o Augusto — disse Cezar, que havia reconhecido o filho pouco antes.
Augusto chegou ao ginásio Farrezão no último caminhão carregado de corpos. Assim como outras vítimas, não tinha conseguido nem sequer sair da Kiss e foi encontrado no banheiro. Muitos, desorientados, acreditaram que a rota de fuga poderia ser por ali. Sem saída pela frente, sufocaram-se até a morte ao inalar a fumaça tóxica gerada pela queima da espuma usada no isolamento acústico.
— Tem dias que me acordo de manhã, sento na cama, e vem tudo aquilo na minha cabeça, passa um filme. Não acredito que isso aconteceu comigo, e que não tenho mais meu filho. Não aceito, vou morrer e não vou aceitar. A gente sofre. Meu marido sofre calado. Ele não fala, mas tem dias que suspira e diz: "Saudade do meu filho" — relata dona Cida.
Despedida
Muitas famílias velaram seus filhos no ginásio Farrezão. Enquanto parte dos corpos ainda era reconhecida, caixões eram acomodados sobre cavaletes e iniciava-se ali a cerimônia de despedida coletiva. O espaço, como descreveu o jornalista David Coimbra, tornou-se pequeno para tamanha dor. Naquele momento, havia 231 mortos, mas outros feridos perderiam a vida nos dias, semanas e meses seguintes. Mariane Wallau, 24 anos, foi a última, e morreu em 19 de maio daquele ano. Internada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre chegou a comemorar o início da recuperação, mas apresentou piora.
Dona Cida não teve forças para entrar no Farrezão e realizou a despedida do filho na igreja evangélica frequentada pela família na época. O outro velório que conseguiu ir foi o de Ruan Pendenza Callegaro, vizinho da família, que crescera com Augusto. Recorda até hoje da cena que viu. Em estado de choque, a mãe do rapaz não reagia. Só deixava as lágrimas correrem pelo rosto, inerte.
Depois do enterro do filho, no Cemitério Santa Rita de Cássia, dona Cida decidiu não retornar para casa. Abrigou-se na moradia de parentes, onde chorava constantemente e não conseguia se alimentar. No sétimo dia, o marido decidiu que estava na hora de ela regressar. Encontrou uma casa vazia e silenciosa, sensação que lhe persegue até hoje. Ao acordar, liga o rádio.
O problema é o dia. Esse silêncio que me machuca. Dez anos, e não consegui ainda superar esse silêncio.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
— Meu problema não é a noite. O problema é o dia. Esse silêncio que me machuca. Dez anos, e não consegui ainda superar esse silêncio. Só quem passa sabe — diz.
Durante as manhãs, busca refúgio nos vizinhos, enquanto o marido está no trabalho. Sempre que volta para casa, encontra memórias em todos os cantos. Passou muito tempo sem conseguir preparar os bolinhos de carne, as panquecas e a torta de bolacha que Augusto tanto gostava:
— É nas mínimas coisas, por mais que não queira. Como eu não vou lembrar? Para mim, ele vai existir sempre. Vou estar velha, caindo aos pedaços, e vou me lembrar do meu filho.
Adoção
Numa das gavetas do quarto de Augusto, junto de fotos e outras lembranças, está guardado um sapatinho branco, usado em seu batizado.
— Enchemos de algodão para não cair. Deve estar guardado o outro pezinho — diz dona Cida, carinhosa.
Foi preciso amarrar o sapatinho na perna do menino para que não caísse. Augusto nasceu magrinho, em 14 de setembro de 1993. Havia algum tempo que dona Cida tentava convencer o marido da adoção. Fazia quatro meses que ele tinha concordado e os dois passaram a integrar a lista de espera. Indicaram ao Judiciário o contato da única vizinha que tinha telefone. Foi ela quem recebeu a ligação, informando que havia uma criança necessitando de uma família.
— Chegamos lá, ele estava num bercinho. Nunca me esqueço. Com um tip top com os botões enferrujados. Um pedaço de lençol era a fralda dele, um saco de açúcar cristal cortado para fazer a calça plástica. Quando eu olhei, me apaixonei — recorda a mãe.
Dona Cida ainda precisou aguardar alguns dias para levar o filho para casa. Sempre que ia ao berçário, pegava o bebê no colo e prometia:
— "Logo a mamãe vai te levar. Tu vais para casa". Ele ouvia minha voz e ficava quietinho.
Em 22 de setembro daquele ano, o menino finalmente foi para a casa, onde os pais vivem até hoje. Dona Cida guardou o calendário daquele mês, onde aponta o dia do aniversário do filho. No mesmo álbum, estão as fotos da festa de um ano.
— Ele não foi no colo de ninguém, só comigo. Era muito agarrado comigo quando era pequeno. Quando eu cansava demais, dava ele para o Cezar e tinha de me esconder — lembra a mãe, enquanto vira as páginas do álbum.
As roupinhas do primeiro aniversário ainda estão no guarda-roupa. Agora, a mãe planeja doar parte delas para outras crianças, da vizinhança.
— Guardei porque eu pensava que um dia teria netos — conta Cida.
A formatura na universidade, talvez o casamento e quem sabe o nascimento dos netos. São momentos que ela se pega imaginando como seriam caso viessem a acontecer. Augusto cursava inglês e sonhava em fazer intercâmbio no Canadá. A mãe se questiona se ele teria realmente ido, se escolheria seguir vivendo no país ou permaneceria em Santa Maria. Onde o filho estaria trabalhando? Dona Cida se indaga repetidas vezes, mas não alcança as respostas.
Luto
No início, nem cogitava se desfazer de algum pertence do filho. Quando a tragédia completou seis meses, em julho de 2013, aceitou participar de uma campanha de doação de roupas e escolheu um dos moletons favoritos de Augusto. Sentiu como se um pedacinho dele tivesse lhe sido levado.
— Foi tão difícil me desfazer daquele moletom — recorda.
Para passar pelo primeiro ano, recorreu a série de medicações de uso controlado. Sentiu dor, culpa, vazio, saudade, revolta, desespero. Quando saía na rua, sem perceber, procurava pelo filho em todos os cantos. Sempre que avistava um grupo de estudantes sentia que encontraria Augusto entre eles. Na parada de ônibus, fixava os olhos varrendo o interior do coletivo lotado de universitários.
— Dói todos os dias — descreve.
Para mim, a dor da perda não muda nunca. Meu filho tinha 19 anos, estava despertando para a vida, cheio de sonhos de planos.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
O dia 27 de janeiro de 2014 lhe trouxe sensação sufocante, de que não havia mais volta. Mesmo guardando tudo que restara do filho, ele não estava ali. Naquela madrugada, velas foram acesas em frente à Kiss, onde 242 corpos brancos foram pintados com tinta no chão, lembrando um ano da tragédia.
Mesmo com o passar dos anos, a aproximação da data faz com que o sofrimento se intensifique. O dia 27 de janeiro é quando dona Cida se isola. Prefere permanecer em casa, longe de todos. Se está sozinha, chora e, quando não suporta mais, transborda em gritos, que ecoam na casa silenciosa.
— Para mim, a dor da perda não muda nunca. Meu filho tinha 19 anos, estava despertando para a vida, cheio de sonhos de planos — diz.
Ao longo desses 10 anos, dona Cida esteve em boa parte dos atos realizados para relembrar a memória das vítimas e clamar por justiça. Participou de caminhadas, protestos e acompanhou cada etapa do processo. Ainda em 2013, a Polícia Civil conclui o inquérito com 16 indiciados e apontou mais responsáveis. Um mês depois, o Ministério Público optou por denunciar por homicídio com dolo eventual quatro réus.
Enquanto aguardava pelas respostas da Justiça, ajudou a escolher as fotos para os banners que relembram o rosto de cada uma das vítimas. No alto do painel atual, no centro de Santa Maria, a foto do filho tem ao lado outros dois Augusto e um Ariel, logo abaixo uma Débora, um Deivis e um Diego. A maioria deles aparece sorridente. A primeira tenda foi montada em abril de 2013, na Praça Saldanha Marinho, onde passariam a ser realizadas as vigílias.
Nesses momentos, dona Cida abraçou pais, mães, avós, que não conhecia, e com quem desenvolveu laços sedimentados pela dor. Passou a integrar a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Convenceu-se de que somente quem viveu a perda consegue compreender a extensão desse sofrimento.
— As pessoas não querem que fale, muita gente não quer. Não gostam que participe, dizem que vou ficar doente. Mas se eu não for, vou ficar mais ainda — conclui.
Em junho de 2015, esteve no julgamento de oito bombeiros realizado pela Justiça Militar de Santa Maria. O próprio MP pediu a absolvição de cinco deles, acusados de negligência, por entender que eles, na verdade, tinham seguido às normas vigentes na época, o que levou dona Cida a deixar a sala aos prantos, assim como outros familiares. Naquele dia, foram condenados dois bombeiros por falsidade ideológica na emissão do segundo alvará da boate, e um deles ainda por prevaricação.
No fim daquele mesmo ano, acompanhou o interrogatório dos réus, que respondiam pelos homicídios. No primeiro deles, no Fórum de Santa Maria, dona Cida não conseguiu conter as lágrimas. O músico Marcelo de Jesus dos Santos, que integrava a banda Gurizada Fandangueira e foi o responsável por segurar o artefato, pediu perdão aos pais. Por fim, a mãe de Augusto disse que chorou de raiva porque não se convencia do arrependimento e que não conseguia perdoá-lo.
Nos anos seguintes, a mãe acompanhou com angústia o vaivém do caso, que tinha como centro o debate se havia ou não dolo (intenção) por parte dos réus. Em dezembro de 2017, o Tribunal de Justiça (TJ) decidiu que eles não iriam a júri e responderiam por homicídio culposo. A acusação apontava que havia dolo eventual, por assumirem o risco. Após série de embates, em junho de 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou o recurso do MP e da associação de familiares e ordenou que os quatro deveriam ser julgados pelo Tribunal do Júri. Mas a batalha não se encerrou ali.
Em 2019, a Justiça definiu que os réus seriam julgados em duas sessões, em março e abril de 2020, mas isso não aconteceu. A defesa de Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, empresário e sócio da boate, conseguiu que o julgamento fosse transferido para Porto Alegre. Os outros três, Mauro Londero Hoffmann,também empresário e sócio da boate, Marcelo, vocalista da banda, e Luciano Bonilha Leão, ajudante do grupo, tiveram o júri marcado para 16 de março de 2020 no Centro de Convenções da UFSM. O que também não ocorreu.
Não tinha forças, só tinha vontade de estar deitada e chorar, chorar. Me dava um ataque, parecia que ia me faltar o ar.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
Um mês antes do júri, mais dois réus conseguiram no TJ o direito de serem julgados na Capital: Mauro e Marcelo. O MP recorreu das decisões, buscando que os quatro fossem julgados em Santa Maria. Por fim, quando o apelo foi negado pelo STJ, o MP optou por solicitar então que Luciano também fosse a julgamento na Capital, num júri único. O pedido foi aceito e o julgamento foi adiado.
Se o júri tivesse acontecido naquele momento, dona Cida acredita que não teria conseguido acompanhar.
— Estava doente, passando mal, me deu uma crise de pânico. Quando via estava chorando, e me doía o peito. Não tinha forças, só tinha vontade de estar deitada e chorar, chorar. Me dava um ataque, parecia que ia me faltar o ar — descreve dona Cida.
Para suportar o sofrimento, precisou recorrer novamente à medicação, que havia suspendido por conta. Assim como ela, viu ao longo desse período muitos pais adoecerem. Ela ainda toma remédio todas as manhãs.
Júri
Exaustivo. É assim que dona Cida resume como foram os 10 dias de julgamento dos quatro réus em Porto Alegre. Como outros pais, decidiu acompanhar tudo presencialmente. Havia momentos em que precisava deixar o salão do júri porque não suportava permanecer lá dentro. A dor ou a revolta brotavam em lágrimas. Nessas horas, ou quando estava muito cansada, recorria à tenda de acolhimento montada junto ao Fórum. Mas seguia acompanhando a transmissão pelo celular.
No dia 5 de dezembro de 2021, um domingo, acompanhou um dos depoimentos mais difíceis de ouvir. Delvani Brondani Rosso, 29 anos, sobrevivente, narrou tudo que passou dentro da boate. O jovem sofreu queimaduras, ficou internado um mês em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e perdeu três amigas no incêndio.
— Quando fui caindo, eu fui me despedindo da minha família, dos meus amigos, pedindo perdão por alguma coisa que tivesse feito. Caí no chão e estava me sentindo queimar, fui me debruçando e colocando as mãos no rosto. E desmaiei — relatou o jovem no depoimento.
O irmão de Delvani conseguiu sair da boate, amarrar uma camisa em torno do nariz e voltar para salvar alguns frequentadores. O sobrevivente acordou na calçada, em estado de choque, salvo pelo familiar. Quando ouviu o relato, dona Cida só conseguia pensar que se Delvani tinha passado por aquilo, Augusto também poderia ter vivido algo parecido.
— Foi horrível. Fiquei imaginando. Se ele sentiu tudo isso, imagina os outros.
Em alguns momentos, foi aconselhada pelos demais a deixar a sala, como durante a exibição de vídeos e áudios registrados na boate. Mas dona Cida estava decidida a acompanhar o máximo que pudesse presencialmente.
— Se fosse para olhar da televisão, tinha ficado em casa — rebatia, sem arredar o pé.
Numa das gravações exibidas durante o júri, ouvia-se tumulto e gritaria e era possível escutar alguém dizendo: "mãe e pai". Nesta hora, dona Cida pensou no filho.
Saber que eles se lembraram da gente, pedindo socorro, e a gente não pode fazer nada. Isso para mim me dói até hoje.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
— Saber que eles se lembraram da gente, pedindo socorro, e a gente não pode fazer nada. Isso para mim me dói até hoje — desespera-se.
Quando retornava ao hotel, dona Cida tinha dificuldade para dormir. Sentia como se o corpo todo estivesse trêmulo, e não conseguia se aquietar. Pela manhã, estava exausta e custava a se levantar. Durante o dia, tinha crises de choro e de ansiedade. O mais difícil era permanecer calada.
— Sempre fui o tipo de pessoa que o que tiver de dizer, tenho de falar. E aquilo pra mim é muito ruim, porque não podia falar — afirma.
No último dia de julgamento, o marido se juntou a ela em Porto Alegre para acompanhar o resultado. Às 18h13min de 10 de dezembro de 2021, o juiz Orlando Faccini Neto começou a leitura do júri mais longo do Judiciário gaúcho. Spohr, Hoffmann, Leão e Santos foram condenados por homicídio, com dolo eventual, pelas mortes de 242 pessoas. As penas variaram entre 18 anos e 22 anos e seis meses de prisão, em regime fechado.
Emocionada, dona Cida caminhou até o promotor David Medina da Silva e lhe deu um abraço. O representante do MP respondeu que tinha buscado aquele resultado não só pelas vítimas, pelos sobreviventes e por suas famílias, mas também porque é pai e não gostaria que isso se repetisse.
— Me senti com dever cumprido. Saiu aquele peso, sabe — afirmou a mãe.
Do alívio à revolta
Quando retornou para casa, dona Cida sentia cansaço extremo, que lhe fez dormir além do normal ao longo de uma semana. No fim daquele ano de 2021, aceitou o convite do sobrinho para passar o Ano Novo em Balneário Camboriú. Queria tentar descansar. No trajeto, as lágrimas surgiram outra vez. Começou a recordar como Augusto e o primo se davam bem e que o filho estava aprendendo a dirigir.
— Comecei a chorar, imaginando a faceirice que ia ser se ele estivesse ali — diz dona Cida.
Após o julgamento, a dona de casa doou boa parte das roupas do filho, que ainda estava guardada. Ficou somente com uma camiseta e com os outros pertences que seguem no quarto do jovem. Numa gaveta, está a carteira que Augusto usava naquela noite e foi devolvida aos pais num saco plástico junto ao celular. Por muito tempo, desprendia dela o odor da fumaça tóxica.
Em 2022, a sensação de dever cumprido começou a ser abalada, com a notícia de que os réus tinham recorrido e pedido a anulação do júri. No início de agosto daquele ano, dona Cida acompanhava a votação, convicta de que o resultado seria mantido. Os desembargadores da 1ª Câmara Criminal decidiram, no entanto, por anular o júri e submeter os réus a novo julgamento. A mãe desmoronou.
— Querer justiça é vingança? Isso dói muito. Dói, dói. A impunidade dói mais do que tudo. Lutamos, até onde deu. Me senti frustrada, decepcionada. Às vezes chego a pensar que não vai haver mais justiça. Parece que a culpa foi nossa. Nós que rebaixamos o forro, colocamos a espuma, compramos a porcaria (artefato) mais barata, erguemos e fizemos tudo. Se eles tivessem consciência da maldade que fizeram, não iam pedir para recorrer. Quem está sofrendo somos nós — desabafa.
Parece que a culpa foi nossa. Nós que rebaixamos o forro, colocamos a espuma, compramos a porcaria (artefato) mais barata, erguemos e fizemos tudo. Se eles tivessem consciência da maldade que fizeram, não iam pedir para recorrer.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
Quando Augusto era pequeno, dona Cida sempre alertava o filho de que estaria ali para defendê-lo, caso ele estivesse certo. Moveria céus e terras para protegê-lo. Manteve essa promessa mesmo após a perda. A mãe chega aos 10 anos com a sensação de que lutou. Por outro lado, aos 64 anos, teme, que, caso a anulação seja mantida, possa não ter forças ou tempo para presenciar justiça.
- Me sinto abandonada. Sem perspectiva de haver alguma justiça. Quando isso vai acontecer? Vai levar dois anos, três anos? Será que vão esperar mais 10 anos para fazer justiça? Será que nós vamos estar aqui? Se eu existir, como vai estar minha saúde? É assim que eu me sinto: desiludida totalmente com a Justiça - diz.
Daqui para a frente
Por muito tempo, dona Cida não conseguiu cruzar em frente ao prédio da boate, que atualmente pertence à AVTSM. Hoje já consegue ir até lá, mas diz que nunca pretende ingressar ali. Um dos projetos para o local é demolir o imóvel e transformá-lo num memorial. Se ela pudesse escolher, deixaria o prédio como está. A fachada está coberta de frases cobrando justiça. Uma delas indaga “onde você estava em 27 de janeiro de 2013?” e leva as pessoas a refletirem sobre jovens que deixaram de viver nessa década.
— A tragédia não foi bonita, a tragédia foi triste. Tinha de ficar como está. Mas, como não pode, vai se deteriorando com o tempo. Se acontece algo, a associação vai ser responsável. Por isso, não dá para deixar — conforma-se.
Ao longo desse tempo, além da perda, os pais precisaram lidar com aquilo que ouviam, desde um pastor que chegou a culpar o jovem por ter ido à festa, até pessoas que questionam o fato de que as famílias tentam manter o assunto vivo na cidade. Durante as vigílias, na Praça Saldanha Marinho, não era incomum receberem críticas por estarem ali.
— É uma ferida aberta para a sociedade. Alguns ficam contra nós, até hoje. Acham que a Kiss é um atraso para a cidade. As pessoas não entendem, eu não quero que aconteça de novo, não quero. Eu tenho sobrinhos com 10, com 14 anos. Não quero que isso aconteça. A Lei Kiss retalharam tanto, que nem entendi mais. Uns dizem que temos de deixar essas almas descansarem. Um pai, uma mãe, nunca vai descansar — indigna-se.
Por outro lado, também há quem apoie os familiares e sobreviventes, entre os moradores e até mesmo quem não vive ali. Um episódio recente comoveu dona Cida. Uma moradora de São Gabriel lhe parou em Santa Maria, e disse que tinha acompanhado todo o julgamento.
— Queria lhe dar um abraço. Tinha vontade de lhe conhecer pessoalmente, de poder lhe abraçar, e dizer não desista, continue — disse a mulher.
Algumas pessoas reconhecem que a nossa luta não é em vão.
MARIA APARECIDA NEVES
Mãe de Augusto
— Ainda tem reconhecimento de pessoas assim. Algumas pessoas reconhecem que a nossa luta não é em vão — emociona-se dona Cida.
Com a proximidade dos 10 anos, série de eventos e iniciativas passou a ser organizada. Uma delas, realizada pelo "Coletivo Kiss: que não se repita" é o projeto Tempo Perdido, que simula como estariam as fisionomias de oito vítimas da tragédia da boate Kiss uma década depois. Augusto é um desses rostos.
Na última semana, dona Cida participou também de um encontro com atores e parte da equipe da série Todo Dia a Mesma Noite da Netflix, que aborda a tragédia. A Globoplay, em parceria com a TV Ovo, coletivo audiovisual de Santa Maria, também lançou série documental nesta semana, da qual a dona Cida também participa.
— É bom que o pessoal vá e veja como aconteceram as coisas — opina dona Cida.
As vigílias, que foram encerradas no período da pandemia, foram retomadas em 2022, e agora vêm sendo realizadas em todo dia 27. Entre a noite desta quinta-feira e a madrugada desta sexta-feira, uma nova vigília tomou as ruas de Santa Maria.
— Ali é o nosso mundo, onde um compreende o outro — resume a mãe.